O que podemos aprender com o povo Yudjá?
| 16 Outubro, 2023
Duarte Antônio Guerra*
Pensando em traduzir a resposta dessa pergunta em conhecimento prático, o grupo da Orientação Espiritual com Crianças e Jovens (OE), do Núcleo Florestal, realizou a primeira expedição com jovens da União do Vegetal para troca de saberes com o povo yudjá, entre os dias 4 e 5 de agosto.
A União do Vegetal há 12 anos vem fazendo um trabalho de aproximação e amizade com os yudjá, tendo o Chá Hoasca como elo. Uma das premissas desse trabalho é o respeito da UDV a tradições e costumes daquele povo, o que tem se traduzido em ricas trocas entre as duas sociedades. A UDV no Xingu é uma história que vem sendo contada ao longo desses anos, de forma discreta, como boa parte do trabalho do Centro.
Durante a vivência com os jovens, algumas semelhanças entre as culturas yudjá e caianinha saltaram aos olhos. Um exemplo disso é o “Wã-bi seha”, expressão que pode ser traduzida por “bem viver”. São práticas do dia a dia do povo yudjá que lhes trazem mais saúde tanto física quanto mental e, principalmente, uma postura positiva diante da vida e de seus desafios.
Essa noção de bem viver vem sendo estudada por universidades e tem correlação com o que a União do Vegetal também ensina e pratica em nossa sociedade para trazer mais qualidade de vida aos sócios e a seus familiares.
Respeito às tradições
O passado está se comunicando com o presente, que é a juventude.
Kumãdiwa, jovem Juruna
O respeito às tradições e a deferência aos que vieram primeiro é algo muito valorizado pelo povo yudjá. Um singelo acontecimento exemplifica isso: no dia anterior à nossa chegada, havia nascido o filho do vice-cacique da aldeia Tuba-Tuba; pergunto qual é o nome da criança, ao que me responde que ainda aguardavam a definição dos avós, que efetivamente escolhem o nome das crianças yudjá. Essa integração entre o presente e o passado é algo que, anos atrás, também chamou atenção de outro médico da UDV, Mestre Edison Saraiva, que notou que adultos que não eram os pais das crianças sabiam detalhes da dinâmica delas, seus medos, crenças e comportamentos.
O respeito às tradições está no cerne de toda cultura indígena. No caso do povo yudjá, até o reencontro com o Vegetal – Wapá, como eles chamam o Chá Hoasca –, os jovens estavam vivendo um distanciamento das tradições e envolvendo-se com práticas nocivas, como o alcoolismo. Com o Wapá, fizeram um movimento de regresso à cultura ancestral, abandonando o uso de substâncias alheias a seus costumes, buscando aprender mais sobre a medicina de seus antepassados por meio do Chá Hoasca.
Nesse movimento, vem ressurgindo a figura do pajé, que é o curador da aldeia. Os yudjás relatam que recebem e aprendem na força do Vegetal as instruções sobre o que fazer nos rituais de pajelança. Interessante dizer que, em um dos primeiros contatos feitos pelos yudjá com a União do Vegetal, após contato com o Chá Hoasca, este foi um ponto que eles afirmaram ter intuído: que necessitavam do Vegetal para readquirir a coragem para fazer o trabalho de pajé, que não estava sendo realizado.
Ligação com a natureza
Todas as árvores falam, falam entre si, os pássaros falam, até os insetos se comunicam.
Os anciãos já diziam isso: a natureza tem vida.
Quando a gente bebe Wapá, a gente ouve ela falar.
Sadeá, jovem yudjá
Outra característica observada é a valorização da natureza. Na União do Vegetal, a natureza tem um lugar especial, fala-se dos encantos da natureza, de sua força; o Mariri e a Chacrona vêm da natureza. É uma religião que nos religa com essa matriz original.
Para os yudjá, a natureza parece ser algo intrínseco à sua própria existência. Eles não fazem parte da natureza, se consideram a própria, por isso há um profundo respeito por tudo que a compõe. A percepção de que suas ações são importantes na conservação do rio e das florestas do Xingu está presente em muitas de suas falas:
Muitas coisas que acontecem fora do Brasil, as catástrofes, terremotos, é porque tudo que existe no subsolo, as pedras preciosas, a água, a função de tudo isso é equilibrar a força da natureza. Aqui a gente é como semente, que cai e brota. Por isso, a gente respeita a natureza e está sempre lutando para preservar. A força da água, a força da floresta protege não só a gente, mas o mundo afora.
Areaki, esposa de Karin, professor yudjá
A cultura da Paz
Os irmãos Villas-Bôas, quando fizeram contato com os yudjá, em 1949, encontraram uma população com menos de 50 indivíduos. Já naquela época, os consideravam amigos fiéis, o que pode ser constatado até hoje. Apesar de fustigados por anos de guerras e lutas pela sobrevivência, migrando desde a foz do rio Xingu até a região onde hoje habitam, é perceptível a cultura da Paz entre o povo yudjá. Um tom de voz mais pacato, fala baixa, quando um fala todos param para ouvir, um exercício que ainda nos é muito caro na sociedade urbanizada.
Areaki, a indígena que chamou atenção por sua fala durante o encontro, deu um representativo exemplo da cultura de Paz daquele povo:
Com o Wapá, parece que o mundo fica pequeno. Enxergamos tudo. Tem muitos querendo acabar com as florestas e com as terras indígenas. Mas a gente não fica bravo, a gente não tem ódio e não vai odiar essas pessoas. A gente pensa que eles têm que vir para conhecer e entender.
Ao mencionar as disputas e a destruição da floresta, Areaki diz não odiar aquelas pessoas, tão pouco diz que não gosta delas, pois entende que, o que falta, é conhecer para preservar. Vemos outra maneira de os yudjá colocarem em prática algo que o Mestre Gabriel ensina na UDV: pagar o mal com o bem, praticar o ensinamento de Jesus de dar a outra face.
Outro exemplo dessa passibilidade presenciei anos atrás, quando encontrei um casal de idosos que se dirigiu a um local próximo à estrada, na beira do rio Xingu, para encontrar uma pessoa que viria da cidade. Após cerca de cinco horas, voltei a encontrá-los saindo de lá. Perguntei-lhes se tinha dado certo o combinado, ao que responderam que não, pois a pessoa não tinha aparecido. Mesmo após cinco horas de espera, sob o Sol intenso da região, nos disseram: “deve ter acontecido alguma coisa com ele, por isso não veio”. Não havia raiva ou qualquer manifestação de julgamento na fala, mas, sim, um tom de voz e semblante serenos, dando sua visão do fato – a Paz na prática.
A alegria
A alegria faz parte da cultura caianinha. No artigo “A convicção do Mestre”, publicado no jornal Alto Madeira (Porto Velho – RO), está presente a seguinte afirmação: “que alegria eu sinto pela bondade de Deus”. Além disso, aqueles que conviveram com o Mestre Gabriel contam que ele era uma pessoa alegre, que fazia brincadeiras sadias com todos.
Entre os yudjá não é diferente. Quando se está entre eles, somos facilmente contagiados por seus sorrisos e bom humor. Nessa expedição, talvez um dos momentos de maior beleza foi presenciar a alegria da integração entre as crianças yudjá e os jovens do Núcleo Florestal, em uma das praias do rio Xingu. Duas tribos que brincavam como uma só, como se há muito se conhecessem: risos soltos, espontaneidade nas interações, pirâmides humanas que não resistiam à primeira gargalhada, jogo de bola com troca de palavras. Com idiomas distintos, sabiam se entender e se traduzir na linguagem da alegria, unidos por amplos sorrisos de ambas as partes.
Há muitas outras similaridades que podem ser observadas entre essas duas culturas – yudjá e caianinha. As que trouxemos aqui são como gotas de orvalho, que nos ajudam a refrescar a memória e enxergar a beleza nas pequenas coisas.
O artigo contou com a colaboração de Flávia Ilíada (Vice-Diretora de Comunicação Externa do Departamento de Memória e Documentação da UDV e membro do Corpo do Conselho do Núcleo Rei Hoasqueiro – Brasília-DF).
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Um trabalho de grande importância
Que interessante esse trabalho até então eu pensava que todas tribos eram quase incomunicáveis. Meu parabéns a vcs que fazem este lindo trabalho.
Trabalho respeitoso da UDV para com os indígenas. Neste relato, percebe-se a integração de povos em prol da cultura da Paz e do bem-viver. Parabéns pelo artigo e por tão especial trabalho.
Linda mensagem! O texto nos transporta para a floresta e para o coração do Mestre!
Parabéns a todos pelo belo trabalho realizado no Xingu e principalmente essa experiência tão rica entre os jovens.
Que encantadora descrição sobre nossos “irmãos Yudja”, percebi uma sintonia com a simplicidade e alegria na forma de Viver! E assim vamos encontrando-nos com as sábias palavras de nosso Guia Mestre Gabriel. Parabéns pelo importante trabalho de expansão da União do Vegetal.
Quero poder visitar esse trabalho de Amor.
Que bom trabalho de recordação para os Yudja e para nós caianinhos. A União sempre se apresentando nos corações e na memória.
Excelente artigo M Duarte
A cada Dia, Trabalho e Capacidade dos nossos Mestres em traduzir estes singelos acontecimentos, fortalece em mim, o Querer caminhar com mais Firmeza, nesta Sagrada Obra do Mestre Gabriel.
Um relato de sensibilidade inigualável. Votos que essa troca de vivência continue rendendo bons frutos!