O Direito Penal e as minorias religiosas hoasqueiras na Espanha

André Fagundes*

| 16 Agosto, 2019

O Chá Hoasca é a união do cipó Mariri com as folhas da Chacrona | DMC/Sede Geral.

No dia 5 de julho de 2019, durante o “I Congreso Internacional Derechos Humanos y Globalización: Justicia, Comunicación y Pensamiento”, em Sevilha (Espanha), foi proferida palestra tendo como tema “O Direito Penal e as minorias religiosas hoasqueiras na Espanha”. A apresentação examinou a interferência do Direito Penal sobre o culto religioso realizado pelas religiões hoasqueiras e sobre o direito de importar o Chá Hoasca (também conhecido como Ayahuasca) para a Espanha. Para tanto, analisaram-se criticamente os fundamentos da decisão judicial proferida em fevereiro de 2016 pelo Tribunal de Valência, num processo em que um sócio da União do Vegetal – Mestre Representante do Núcleo de Valência (à época, Distribuição Autorizada de Vegetal) – foi acusado da prática de crime contra a saúde pública ao entrar na Espanha com 20 litros de Vegetal (denominação que a União do Vegetal usa para Ayahuasca). Ao final, com base no princípio da inocência, o Mestre foi absolvido e o processo foi arquivado.

A sentença tratou o Chá Hoasca como sendo um produto proibido e impediu a sua entrada no país. Considerou-se que, pelo fato de as folhas da Chacrona conterem DMT (dimetiltriptamina – substância proscrita pela Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971), a utilização e o transporte do Vegetal estariam vedados pela ordem internacional. Tal conclusão baseou-se na análise descontextualizada de um dispositivo da Convenção que preceitua que “um preparado está sujeito às mesmas medidas de controle que a substância psicotrópica nele contida” (art. 3º, n. 1).

Ocorre que tal decisão não só ignorou a manifestação do Ministério Público espanhol (o qual reconheceu que o Chá Hoasca não estava abrangido pela Convenção internacional) como contrariou a orientação do International Narcotics Control Board (INCB) [Órgão Internacional de Controle de Entorpecentes], entidade das Nações Unidas especializada na matéria. Com efeito, tal entidade, que foi criada justamente para esclarecer e fiscalizar o cumprimento da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas pelos países signatários, asseverou que o referido diploma internacional não se aplica nem ao Chá Hoasca nem às plantas utilizadas na sua preparação.

Basicamente o DMT está proibido apenas quando resulta de um processo de isolamento ou purificação, não quando se encontra presente de forma natural no chá feito de plantas. Ou seja, a Convenção regula apenas a forma sintética do DMT, não as pequeníssimas quantidades que se encontram naturalmente no Chá Hoasca.

Vale frisar que em nenhuma etapa do processo de preparação do Chá Hoasca na União do Vegetal o DMT é destilado, purificado ou separado das outras substâncias das plantas. O Preparo do Vegetal é feito por meio da simples decocção do cipó Mariri (Banisteriopsis caapi) e das folhas da árvore Chacrona (Psicotria viridis) em suas formas naturais, sem o isolamento do DMT. É interessante notar que a própria decisão espanhola admitiu tal situação: “O vazio probatório de que o acusado pretendia sintetizar ou cristalizar a DMT é absoluto”.

Um outro ponto que chamou a atenção no caso é que não foi necessário analisar as provas produzidas em relação à posse do Chá Hoasca: desde o início o Mestre da União reconheceu a posse do Vegetal, explicou o que era e para que servia, e sua intenção de entrar legalmente na Espanha, além de trazer consigo toda a documentação da inscrição da UDV no país. Não houve nenhuma tentativa de camuflar as garrafas ou mascarar o seu conteúdo. Todas as garrafas continham rótulo com a descrição clara e fidedigna do conteúdo, revelando a postura transparente do Mestre.

Ao longo da exposição a respeito da interferência do Direito Penal sobre as práticas religiosas das religiões hoasqueiras, verificou-se também que, embora seja legítima, em abstrato, a proibição de substâncias psicoativas que representem riscos à saúde, concretamente o uso sacramental da Hoasca não se enquadra em tal pressuposto, razão pela qual os hoasqueiros não podem ser tolhidos de praticar o seu culto religioso. Explica-se.

Não se está diante de um conflito entre direitos e valores constitucionais comunitários, dado que a saúde pública (bem jurídico a que se visaria proteger) não está propriamente em risco. Há inúmeros estudos da comunidade científica sobre o tema que comprovam que o uso do Chá Hoasca dentro do contexto ritualístico-religioso não só é inofensivo como é benéfico à saúde física e mental daqueles que o comungam. Além disso, não há qualquer histórico de desvio do contexto religioso no seio da UDV.

É desnecessário, em vista disso, fazer uma ponderação (que pressupõe a consideração de dois valores em confronto) quando estamos perante o uso sacramental da Hoasca. Inexistindo, pois, o suposto conflito, a solução só pode ser a garantia do direito ao uso religioso do Chá Hoasca.

A apresentação foi recebida com grande entusiasmo pelos participantes do congresso, que formularam diversas perguntas a respeito do tema e da origem cabocla da União do Vegetal.

Comentando sobre o processo e a situação atual na Espanha, M. Jean Adriano, Mestre Representante do Núcleo de Valência, conta que “antes e depois da sentença de 2016, vimos o quanto estamos sendo acompanhados pelo nosso Mestre Gabriel. Vimos e vemos que temos o amparo e a mão estendida do nosso Guia. Atualmente somos 37 sócios, e recentemente tivemos a grata alegria de sermos elevados a Núcleo, com a presença das autoridades máximas do Centro, incluindo o Mestre Geral Representante e membros do Conage. Atualmente há muitas pessoas esperando quase dois anos para conhecerem o Vegetal. São muitas as procuras e o interesse das pessoas para um despertar da consciência. Esperamos que em breve as autoridades da Europa também se despertem para esta tão desejada regulamentação do direto ao uso religioso da Hoasca”. 

Embora presente em dez países, além do Brasil, a União do Vegetal segue trabalhando com responsabilidade em defesa do uso religioso do Chá Hoasca, essencial ao funcionamento das sedes que mantém na Europa, conforme esclarece o Mestre Geral Representante (autoridade máxima do Centro), Paulo Afonso Amato Condé: “A UDV trabalha pelo desenvolvimento humano, em seu sentido moral, intelectual e espiritual. Nossa experiência, desde que esta instituição religiosa foi criada, demonstra que contribuímos para a construção de um mundo mais justo e pacífico, o que já é reconhecido pelas autoridades de diversos países, razão pela qual confiamos no respeito ao direito do uso religioso do chá que é nosso Sacramento”.

*André Fagundes é integrante do Corpo Instrutivo do Núcleo Luz Boa (Lisboa, Portugal), doutorando em Direito Público e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra, Portugal.

6 respostas
  1. Frederico Korndorfer Neto
    Frederico Korndorfer Neto says:

    Ao amigo André Fagundes, parabéns pela iniciativa e excelente estudo que muito tem contribuído ao processo de institucionalização do uso sagrado do chá pelos sócios da União do Vegetal.

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  2. Margarida Dias de Amorim
    Margarida Dias de Amorim says:

    Parabéns André Fagundes, pelo brilhante trabalho, em esclarecimentos sobre a religiosidade intencional e respeitosa da utilização do uso do Chá Hoasca ! Deus e o Mestre lhe abençoe , coroando com exito seus objetivos! Bravos!

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  3. Carlos Carvalho da Silva
    Carlos Carvalho da Silva says:

    Grande trabalho que o irmão André vem fazendo na defesa do uso sagrado da Hoasca e contribuindo para esclarecer autoridades e instituições internacionais sobre o uso religioso do chá.

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