O canto dos pássaros e a música na União do Vegetal
José Radier de Sousa*
| 20 Janeiro, 2021
Johan Dalgas Frisch é o mais importante ornitólogo do Brasil. Em 1969, Dalgas lançou o disco “Sinfonia das Aves Brasileiras”, onde peças sinfônicas e músicas populares brasileiras se juntam a cantos de pássaros, materializando, musicalmente, o sentimento do cientista pelas florestas do Brasil. Por meio desse disco, Dalgas foi ligado, eternamente, na história da música na União do Vegetal.
Essa ligação se deu quando o Mestre Geraldo Carvalho (in memoriam), após sua primeira Sessão de Vegetal, em Porto Velho (RO), teve uma experiência de ouvir, de dentro do quarto, uma pianista tocar a música “Valsa do Imperador”, de Johann Strauss II, no salão do hotel no qual estava hospedado. Naquele momento, ele fez uma viagem pelas notas musicais e se viu num salão de palácio, onde homens e mulheres dançavam valsa, em trajes de gala.
Quando voltou a Manaus, deu a ideia ao seu irmão, Mestre Cruzeiro (depois conhecido como Mestre Florêncio – in memoriam), de, ao beberem o Vegetal, ouvirem músicas. Mestre Cruzeiro aceitou a ideia, pegou emprestado, de sua sobrinha, uma eletrola Belair, o disco “Sinfonia das Aves Brasileiras”, do seu cunhado Vicente Marques (depois integrante do Quadro de Mestres), beberam o Vegetal e ficaram encantados com o que viram sob os fluidos do Chá Hoasca.
Após aquele dia, seguindo a ideia do seu irmão Geraldo, Mestre Cruzeiro encaminhou de presente ao Mestre Gabriel uma eletrola Belair e um exemplar do mesmo disco, acompanhados por uma carta, pedindo a aprovação do uso da música no Salão do Vegetal. Dias depois, Mestre Cruzeiro recebe uma carta de Mestre Gabriel aprovando o pedido.
Preservação do meio ambiente
Dalgas Frisch (1930) é nascido na cidade de São Paulo-SP e filho de dinamarqueses. Tem devotado sua vida à preservação do meio ambiente, em especial às aves brasileiras. Seu bisavô, Enrico Mylius Dalgas, é renomado na Dinamarca pela recuperação e pelo reflorestamento da região ocidental de Jutland. Seu pai, Svend Frisch, trabalhou com o pintor Pablo Picasso e desenhou diversas espécies de aves brasileiras.
Dalgas formou-se em Engenharia Industrial. Após voltar de uma viagem que fez à Escócia em 1958, dedicou-se a gravar o canto das nossas aves nativas. Iniciou, então, uma grande jornada em busca dos mais belos cantos de pássaros, um em especial, nunca dantes gravado: o canto do verdadeiro uirapuru.
Canto do uirapuru
Era 7 de novembro de 1962, no Seringal Bagaço, no Acre, localizado a 50 quilômetros da capital Rio Branco, quando o encontro com o misterioso pássaro uirapuru aconteceu, assim descrito pelo próprio Dalgas:
“À noite caiu uma chuva violenta, no dia seguinte saiu um céu azul e as aves todas cantavam, a floresta toda cantava, parecia até que as folhas das árvores cantavam. Saí com o índio, com minha parabólica, com o tripé, e o índio falou: cantou uirapuru! Montei o tripé com a parabólica em direção da mata. Cantou de novo. ‘Então temos que entrar na mata, tem que estar aqui a gravação.’ Entrei 100m dentro da mata, liguei, dei marcha à ré no gravador-retrovisor e toquei, e um passarinho pequeno, desse “tamainho”, sentou em cima do gravador, eu disse ‘sai, sai, sai’, e o índio: mas é o uirapuru! Aí ele subiu num galho, de um metro e meio de distância, virei a parábola discretamente em direção a ele, deixei gravando. Ele cantou de novo. Gravei ele perfeito! Retransmiti e as penas levantaram, cantou o 2º canto. Gravei de novo. Aí reproduzi, ele levantou-se, cantou o terceiro, cantou 7 cantos diferentes. Eu nunca vi uma ave, eu nunca soube que no mundo tinha uma ave que tinha 7 cantos diferentes. As aves, normalmente, têm um canto só, talvez dois, talvez três piados, mas 7 cantos diferentes, único caso”.
Assim, foi gravado pela primeira vez o canto da ave lendária, e segundo os índios, quando o uirapuru canta, a floresta silencia.
Parque Nacional
Também é de Dalgas a idealização e criação do Parque Nacional das Montanhas do Tumucumaque, localizado nos estados do Amapá e do Pará – o maior parque de floresta tropical do mundo, com 3,8 milhões de hectares. Em 2012, foi condecorado pela Presidência da República do Brasil, quando recebeu o Grau de Oficial da Ordem Rio Branco, por seus distintos serviços meritórios e virtudes cívicas.
Diante desses feitos, e de tantos outros não citados aqui, fico imaginando se Mestre Gabriel utilizou o disco Sinfonia das Aves Brasileiras tão somente por ter sido presenteado por um dos seus discípulos.
Em reconhecimento às suas dignas obras em defesa da natureza, fica aqui uma humilde homenagem ao senhor Johan Dalgas Frisch, que está presente nas origens da nossa Sagrada União do Vegetal.**
*José Radier de Sousa é Integrante do Corpo Instrutivo da Sede Geral (Brasília-DF).
**O texto foi escrito com base no documentário “Ave, Dalgas”, produzido pela TV Senado (2012), e no livro “Cantiga de Viola” (2018), de autoria do Mestre Edson Lodi Campos Soares (Sede Geral-DF) | Foto externa: Dalgas Frisch e o filho Christian – reprodução do livro: Aves brasileiras, minha paixão”.
SERVIÇO:
Para conhecer mais a respeito da música na União do Vegetal, visite o site Nossa Loja e adquira o livro “Cantiga de Viola – Relicário de Sons do Sertão”, de autoria do jornalista Edson Lodi. A “Valsa do Imperador” e outras músicas narradas no “Cantigas de Viola” podem ser ouvidas no canal do YouTube criado exclusivamente com este objetivo. Clique aqui e acesse.
| Publicado anteriormente em 22 de março de 2019.
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Excelente matéria!
Ouvi o M. Geraldo Carvalho e M. Florêncio falar a respeito da música no Salão do Vegetal diversas vezes. É um assunto riquíssimo!
Parabéns à equipe do Blog.
Vale observar que, de acordo com o encarte que acompanha o LP, músicas deste disco foram oferecidas de presente à Rainha Elizabeth da Grã-Bretanha, à Rainha Juliana e ao príncipe Bernardo da Holanda, e também seria oferecida uma música ao Imperador Hirohito do Japão. Presente ofertado a reis e rainhas, que também foi ofertado ao nosso Mestre.
Muito especial essa matéria, fiz uma viagem no tempo quando por diversas vezes tive a oportunidade de escutar essas histórias, da origem da música no salão do vegetal, pelo próprio Mestre Geraldo Carvalho e pelo Mestre Florêncio (ambos in memoriam). Realmente, o Mestre Gabriel aprovou essa primeira música por um bom motivo, teve sim uma bela história em meio a tudo isso.
Ótimo!
Quando leio uma matéria desta, sinto a responsabilidade que a União do Vegetal tem com o meio ambiente.
Parabéns a todos pelo excelente trabalho de pesquisa e divulgação.
Contextualização magnífica e de grande relevância pra todos nós.
Merecida a homenagem!
Contextualização magnífica de grande relevância pra todos nós. Merecida a homenagem!
Parabéns a equipe do blog.
Seringal Bagaço é onde nasceu e viveu Marina Silva antes de iniciar sua trajetória nas cidades.
Mano Radier,
Belo registro. Todas as escolhas feitas por Mestre Gabriel merecem estudos iguais a este.
Grato pela dedicação.
Que história bonita, quero muito conhecer o Acre e saber mais da historia de nosso povo.
Que coisa tão linda!!!!
Amo os passarinhos e os compreendo como mensageiros dos Céus!
Escutar música com passarinhos, já é algo maravilhoso e, estando de Burracheira, então, é ndescritível!!!
Muito emocionante essa vivência do Dalgas e o Uirapuru!
Gratidão por compartilharem conosco!
Saúde para todos!
Imagina ouvir 7 cantos de um único passarinho, muito bom. Valeu equipe do blog e todos os envolvidos.
Belíssima e oportuna homenagem.
Que aula de história!
Grata equipe do Blog por esta riqueza
Parabéns ao nosso irmão José Radier pelo texto, riquíssimo.
Hola yo tengo una esperencia fantástica psicóloga física espiritual,com ela vejetal encanto de la natureza, UDV.Y la fuerza de mí entusiasmo es la razón de mí cada vez más estaré luchando contra mías imperfecciones, teniendo plena convicción de que estare venciendo todos los mis enemigos internos.Luz Paz Amor
Belíssima reportagem!
Que história linda! A boa música é uma das mais belas formas de nos ligar com Deus. Parabéns por este riquíssimo trabalho da Equipe do Blog! Gratidão
Saudações aos apreciadores da boa música. Esse LP, lançado inicialmente em 1966 e utilizado primeiramente em Manaus pelo Mestre Florêncio e depois em Porto Velho, pelo Mestre Gabriel, é um daqueles discos que você escuta diversas vezes e sempre é transportado para as florestas, habitat natural dos pássaros e das nossas plantas sagradas. Um texto que resgata nossas origens musicais e presta uma justa homenagem a Johan Dalgas Frisch, homem simples que dedica a vida em defesa do meio ambiente, da fauna e da flora do Brasil. Parabéns a José Radier pelo texto e ao blog pela publicação.
Disco que transmite simplicidade em seu canto musical transmitido pelos pássaros. Simples como esta Sagrada União criada pelo Mestre Gabriel. Homenagem bem reconhecida pela sua grande importância deste trabalho feito pelo Dalgas Frisch. Que possamos ter outros discos da época do Mestre por aqui, importante este resgate das origens…
Parabéns a todos envolvidos neste trabalho.
RESPOSTA: Caro Kleber, outras músicas da época do Mestre Gabriel já foram publicadas aqui no Blog da UDV. Pesquise a respeito d”As músicas do Mestre” que aparecerá uma série especial produzida pelo DMC com as músicas Casa do Sol Nascente, Arrastão e Catingueira. Além disso, a publicação “A música como instrumento do Mestre Gabriel” fala a respeito de três músicas utilizadas por MG: Dilema da Vida, Uma Casa de Caboclo e Agradecimento.
Linda matéria e importante registro. Gratidão.
Bom dia a todos do Blog. Legal esse retorno de vocês. Grato pela dica. Essas informações que me passou já tive acesso, gostei um tanto. Muito bem feito com participação de grandes colecionadores e amigos, João Bosco Queiroz, Marcelo Lima e Luiz Cardoso. Sou pesquisador e colecionador também. Os discos da época do Mestre são uma quantidade boa, né? Tenho a maioria deles. Inclusive já gravei alguns deles pro DMC. Mas, eu falei no sentido de incentivar a continuidade deste trabalho. Sei que vocês estão já fazendo isso e vão ainda postar outros discos e contar algo a respeito. Só agora estou começando a manifestar por aqui, porque o amigo João Bosco está incentivando eu participar mais. Acompanho o Blog todo mês. Importante isso que você falou. Que as outras pessoas que ainda não conhecem essas outras postagens relacionadas a musica na União, possam ter acesso e conhecer um pouco mais…mais uma vez sou grato pelo retorno..abraços sonoros..
Linda história, que riqueza de detalhes. Gostaria de ouvir essa gravação feita do Uirapuru. É possível? Ela ainda existe?
Grata.
RESPOSTA: Cara Tábata, é possível encontrar diversos vídeos na internet com o canto do Uirapuru. A música que citamos no texto é a Valsa o Imperador, que M. Geraldo Carvalho ouviu e, na sequência, o disco foi dado de presente ao M. Gabriel, que aprovou seu uso no Salão do Vegetal. Essa música, a sra pode ouvir neste link: https://youtu.be/cABxa1sGrVU
Sou a Marina Da Silva, gostei muito do seu artigo tem
muito conteúdo de valor parabéns nota 10 gostei muito.