Primeira médica indígena a participar de Comissão no CFM é sócia da UDV

| 20 Dezembro, 2023

Rodrigo Bomfim Pacheco*  

Foto: Paulo Henrique Janerini.

Criada nos seringais amazônicos, em meio a rios e florestas, a União do Vegetal congrega entre seus membros pessoas de todas as raças e classes sociais, numa demonstração clara de que a Obra do Mestre Gabriel é para todos.

Historicamente, sabe-se que o Chá Hoasca permaneceu presente na Terra por meio das diversas etnias indígenas que dele faziam uso – e muitas dessas etnias seguem fazendo o seu uso ritualístico e tradicional -, e, em tempos mais recentes, chegou a ser utilizado pelos antigos “soldados da borracha” (seringueiros), que conheceram o “cipó”, ou Hoasca, das mãos dos povos indígenas.

Nesse contexto, a União do Vegetal vem trabalhando no resgate desse passado histórico. Em Mato Grosso, por exemplo, no Parque Indígena do Xingu, a UDV, por meio do seu Departamento Médico-Científico (Demec) e da Associação Novo Encanto, está presente na terra dos Yudjá. 

Em outros territórios, muitos integrantes dos povos originários também já beberam o Vegetal. Recentemente, uma mulher indígena, formada em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), alcançou destaque ao ser convidada para fazer parte da Comissão de Integração dos Médicos de Fronteira, uma comissão técnica do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Trata-se de Danielle Soprano Pereira, que pertence ao povo Omágua Kambeba, presente tanto no Brasil quanto no Peru, na Colômbia e no Equador. Seu nome indígena é Adana Omágua Kambeba. Em nosso país, a maior concentração dessa população está no alto, médio e baixo rio Amazonas (também conhecido como rio Solimões), bem como no baixo rio Negro.

Foto: Marlice Nunes.

Trajetória: da Amazônia para a faculdade de Medicina

Danielle/Adana conta que já nasceu com “sinais para Medicina”. Os mais velhos viam nela o zelo e cuidado com pessoas, plantas e animais. Desde cedo se interessou em aprender os métodos ancestrais de cura do seu povo, com o uso das ervas medicinais disponíveis na região e dos rezos tradicionais. “Esse conhecimento dos rezadores, dos curandeiros atendia até um certo ponto, mas o último recurso era procurar a cidade mais próxima em busca da medicina científica oficial, daí cresceu em mim a vontade de estudar e me formar em Medicina, a seguir este caminho como uma missão de vida”, explica a médica.

Atualmente, Adana trabalha no Hospital Sofia Feldman, em Belo Horizonte-MG, uma maternidade especializada em partos humanizados, saúde da mulher e cuidados com recém-nascidos, além de prestar atendimentos esporádicos à população carente. Após obter o diploma, a médica vem procurando unir a medicina tradicional indígena com as práticas da medicina científica – à qual mantém um aprendizado e aperfeiçoamento constantes.

E/D: Pajé Gildo Bane Huni Kuin, Adana Omágua Kambeba e Txana Nixiwaka Huni Kuin | Foto: Henrique Gualtieri.

Missão: integrar o saber tradicional indígena e a medicina científica

Adana explica que seu interesse é provocar um diálogo entre as duas medicinas – científica e indígena –, especificamente no que diz respeito ao atendimento aos povos indígenas. “Ambas (medicinas) trabalham dentro de contextos diferentes, então como nós, seres humanos, não somos apenas um organismo, um conjunto de órgãos, temos também os aspectos social, sentimental, o espírito e a consciência, e nenhuma das duas medicinas tem resposta para tudo, entendo que a parceria pode facilitar e ampliar os recursos disponíveis para curar as pessoas”, frisou a médica.

O povo Omágua Kambeba, ao contrário de algumas etnias, aceita que tanto o homem quanto a mulher possam praticar o xamanismo, e ser pajé. Adana vem se preparando para ser reconhecida como tal, com dietas específicas (“tem uma que estou fazendo tem seis anos”) e retiros espirituais na floresta. Em breve, concluirá também a sua formação como xamã. “A exemplo da medicina tradicional, é um estudo para a vida toda”, destaca. 

“Às vezes, acontece do indígena não aceitar a medicina científica oficial. Por outro lado, há médicos que não entendem os métodos da medicinal tradicional daqueles povos. Aí, então, posso auxiliar, porque sou médica e sou indígena, e os dois lados me escutam. Para isso venho me preparando até hoje nas duas escolas – e me considero ainda uma aprendiz.”

Caminhada na UDV

Adana pertence ao Quadro de Sócios da União do Vegetal, no Núcleo Rei Salomão, em Betim-MG, há cerca de dez anos. Considera a UDV a sua “família espiritual” e tem gratidão pelo respeito à sua origem e às práticas indígenas. “Eu já bebia Ayahuasca antes de chegar a UDV. Sou grata por terem compreendido a minha situação, porque faz parte da linha xamânica que estou seguindo fazer o uso do Chá nas cerimônias onde temos nossos cânticos e rezos tradicionais de cunho espiritual. Muitos povos indígenas também têm ensinamentos sobre o amor, sobre a paz e sobre os valores da coletividade”, frisou a médica indígena.

Para ela, a União do Vegetal tem sido parceira no sentido de acolher e respeitar suas origens: “Por isso me sinto acolhida, já que não escondo que participo das nossas cerimônias xamânicas”.

O Mestre Edson Lodi, que participou com Adana da 4ª Conferência Indígena da Ayahuasca, realizada no Instituto Yorenka Tasoremtsi, no Acre, destaca que “Adana é uma mulher de fortes raízes, com frondosa e persistente busca de servir ao seu povo – seja indígena ou não. É a primeira mulher indígena a fazer parte do Conselho Federal de Medicina, o que muito o engrandece e o dignifica. A presença dela no Conselho é fruto de incansáveis estudos e renúncias pessoais, no propósito da integração dos saberes ancestrais da medicina indígena e convencional”. 

A médica/indígena/hoasqueira mantém a esperança de que o diálogo possa unir os dois conhecimentos num objetivo comum: a vida do próximo. “E é neste sentido que a União do Vegetal tem me auxiliado, com respeito, e eu sou muito grata a esta irmandade”, finaliza. 

Rodrigo

*Rodrigo Bomfim Pacheco pertence ao Quadro de Mestres do Núcleo Príncipe Ancarilho (Guarapari-ES).

9 respostas
  1. Ivan de Souza
    Ivan de Souza says:

    Bem importante esse entrelace de culturas e saberes. Vejo que há muita Ciência no saber indígena, com forte ligação espiritual e aurindo diretamente da Fonte Maior, sem necessitar da Ciência Acadêmica para alcançar os mesmos conhecimentos. E vejo que há muita espiritualidade no saber acadêmico, sem necessitar dos rituais para alcançar os conhecimentos científicos.
    Muita bonita essa União dos saberes e das práticas.
    Conheço Danielle/Adana desde sua chegada ao Núcleo Rei Salomão e sou um dos que admiram sua audaz simplicidade e determinação.

  2. Ticiana Guimarães
    Ticiana Guimarães says:

    Que notícia mais linda de se ler! Viva os povos originários do nosso país e de toda a América latina! Que possamos ter mais políticas públicas possibilitando o acesso dos povos indígenas à educação gratuita, pública e de qualidade! Que bom que essa médica é oasqueira e poderá levar a saúde e a ciência aos povos ribeirinhos, que tanto necessitam. Viva a UDV, Viva o Mestre Gabriel! Uma notícia desse aquece meu coração de esperança de um país mais igualitário e com oportunidade para todos, especialmente por ela ser indígena e uma oasqueira!

  3. Waira Souza Criniti Aranha
    Waira Souza Criniti Aranha says:

    Ficamos felizes ao ler esta matéria tão bem escrita tratando de uma mulher hoasqueira que honra sua raiz indígena, buscando unir os saberes médicos da floresta e da academia, em prol de todos nós. Que venham mais notícias maravilhosas como esta.

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