Mestre Florêncio: um Cruzeiro no céu da UDV
| 14 Abril, 2021
Ailton Araújo de Carvalho*
Joaquim José de Queiroz**
Se estivesse hoje aqui presente em matéria, Mestre Cruzeiro ou Mestre Florêncio Siqueira de Carvalho estaria inteirando 89 anos de vida bem vividos, dando sombra e espalhando flores, feito um velho e resistente carvalho; cantando contente e feliz, semelhante a um sabiá, e iluminando e irradiando sorrisos e alegria, igualmente um Cruzeiro de uma grande constelação.
O carvalho resistente
Muitas tradições em todo o mundo consideram o carvalho uma árvore sagrada em virtude da sua robustez e majestosidade. Carvalho significa “longevidade”, “resistência” ou “árvore de diversas características” e, quanto mais temporais e tempestades o carvalho enfrenta, mais forte ele fica… Suas raízes naturalmente se aprofundam mais na terra e seu caule se torna mais robusto, sendo impossível uma tempestade arrancá-lo do solo ou derrubá-lo. Essas características, presentes nessa importante árvore, também se encontram em Florêncio Siqueira de Carvalho, Mestre Cruzeiro ou Mestre Florêncio como o conhecemos na União do Vegetal. Nordestino forte, destemido e resistente, nasceu no dia 14 de abril de 1932, às quatro e meia da manhã, numa pequena rua chamada São José, na cidade de Juazeiro do Norte, Estado do Ceará, filho de um alagoano chamado Manoel Florêncio de Carvalho e de uma pernambucana conhecida como Cecília Nunes de Carvalho.
Ainda criança, com cerca de 10 anos de idade, foi para o Amazonas, trabalhar na agricultura, junto com os pais e irmãos, perdendo assim a oportunidade de estudar ou frequentar escolas. Adolescente, entrou nas florestas, onde foi mateiro, seringueiro, tropeiro, tuxaua e quase “bicho do mato”, como costumava dizer. Essa vivência nas florestas, durante um bom período de sua vida, serviu para desenvolver a resiliência, fortalecer seu espírito, estudar os astros e se formar na escola da natureza.
Lutando contra as adversidades da vida, atravessando momentos difíceis ou enfrentando o perigo, jamais deixou de batalhar por uma vida melhor e nunca perdeu a fé e a esperança de que seria um vitorioso. Forjado na luta, na dificuldade, no sofrimento, durante sua caminhada nunca reclamou, desistiu ou correu de suas responsabilidades, mantendo sempre uma alegria inocente, um sorriso de criança travessa e um sentimento de amor no coração, sendo um exemplo de resistência e superação.
Assim, aquela pequena semente do Carvalho, que entrou nas florestas ainda jovem, conheceu, cresceu e aprendeu coisas que serviriam para tornar o Carvalho uma árvore frondosa e rara, cujas raízes estão plantadas definitivamente no solo sagrado da União e os galhos, as flores e os frutos espalhados em muitos lugares sempre brotando alegria, esperança e amor neste abençoado lugar. Esse resistente Carvalho não permitiu que os ventos e as tempestades da vida arrancassem suas raízes da União do Vegetal.
O sabiá encantado
Vivendo nas florestas, enquanto trabalhava se distraía ouvindo o canto dos pássaros e cantando junto com eles. Essa habilidade de compreender a linguagem dos animais e observar o ritmo da natureza seria de grande utilidade quando saiu das matas e voltou ao convívio social, pois aprendera a se comunicar naturalmente com todas as pessoas e mantinha uma espécie de linguagem que refletia uma alegria e harmonia interior, agindo assim com certa e grande naturalidade.
Reza a lenda que, quando o pássaro uirapuru canta, todos os outros se calam para ouvir seu canto, a floresta toda entra em profundo silêncio, em sinal de respeito e admiração; assim também acontecia com o Mestre Florêncio quando falava e principalmente quando fazia chamadas. Todos se calavam para ouvir aquele canto melodioso, agradável, harmonioso e encantador. Dizia o Mestre Gabriel que “quem não se encantar com o Mestre Florêncio fazendo chamadas não se encanta com mais nada no Salão do Vegetal”.
Por essa razão, foi um dos primeiros Mestres formados na União do Vegetal e recebeu o título de Mestre “pelos encantos”. Seu jeito único e especial de fazer chamadas não era apenas porque tinha uma voz bonita e afinada, mas também pela capacidade adquirida durante o tempo que viveu nas florestas, como se naquele período tivesse recebido um dom natural que foi se revelando à medida que conhecia cada vez mais o Mestre e aprendia como trabalhar com o Vegetal.
Além de encantar a todos dentro do Salão do Vegetal, fora se mostrou um dos melhores Mestres de Preparo, com uma habilidade e capacidade de preparar um Vegetal “ponto grau”; sua vivência nos seringais contribuiu para que fosse um exímio conhecedor das plantas naturais e, quando chegou à União, um grande incentivador e plantador do Mariri, da Chacrona e das ervas medicinais. Sua ligação com as plantas e as coisas naturais fazia dele um “doutor caboclo”, um homem das florestas; sua ligação com os astros fazia dele alguém que conhece o ritmo da vida e a harmonia da natureza.
Sua presença nos lugares da União era certeza de alegria, simplicidade e espontaneidade. Sua maneira de brincar, falar, cantar, dirigir Sessão prendia a atenção de todos e despertava a vontade e o querer de continuar ouvindo em silêncio o cantar sonoro daquele homem-pássaro, daquele sabiá que não vivia preso em nenhum lugar, pois seu lar era o Norte, Manaus, e sua casa a União do Vegetal, e sempre “voava” e “pousava” onde fosse chamado para alegrar as pessoas com seu canto bonito e sua palavra firme, forte e segura.
O Cruzeiro da constelação de estrelas da União
Morando em Cruzeiro do Sul, Estado do Acre, ganhou o apelido de “Cruzeiro”, que carregaria e pelo qual seria conhecido durante grande parte da vida. Com esse nome, bebeu Vegetal uma vez, ainda nos seringais, com o Mestre Gabriel, com quem iria se reencontrar mais adiante para ser seu amigo, compadre, discípulo e Diretor Social da Associação criada por ele. Sendo conhecido por Cruzeiro, foi morar em Porto Velho quando saiu dos seringais, para ser serralheiro e comerciante.
Num gesto de grandeza e nobreza, abdicou da riqueza material em Porto Velho, depois de ouvir do Mestre Gabriel que seria um dos homens mais ricos do território, se continuasse morando ali, para distribuir com os parentes e amigos o tesouro espiritual que havia encontrado ao receber a Estrela de Mestre. O que tinha conquistado para si queria agora repartir com todos e em especial com seus familiares.
E assim, junto com sua família, foi morar em Manaus, onde iniciou o primeiro Núcleo registrado da União do Vegetal e sendo um dos principais responsáveis pela expansão do centro ao longo do tempo. Aquele novo Ponto de Luz no Norte se expandiu e formou com o tempo uma constelação de lugares em diversos cantos do Brasil, iluminando e clareando a vida de muitas e muitas pessoas. Essa expansão, também, proporcionou um desenvolvimento interior ao Mestre Cruzeiro, que passou a ser Mestre Florêncio e galgou todos os degraus da hierarquia do Centro, ocupando o lugar de Mestre Representante, Mestre Central, Mestre Assistente Geral e Mestre Geral Representante.
Apesar de distante fisicamente do Mestre Gabriel, teve a feliz ideia de registrar, por meio de gravações das Sessões, momentos únicos, importantes e sublimes da presença e da oratória do Mestre Gabriel, beneficiando todos nós com mais este tesouro, pelo qual podemos ouvir e conhecer os ensinamentos superiores e guardar na memória a voz do nosso Guia Espiritual.
Hoje, ao lembrarmos do seu sorriso infantil e espontâneo; ao sentirmos o amor do seu bondoso coração; ao recordarmos do seu canto sereno; ao contarmos do seu exemplo de superação, responsabilidade e amizade e ao comemorarmos sua história de vida, temos a certeza de que ele permanece sendo um grande Cruzeiro no céu orientando, formando e iluminando constelações de lugares e pessoas em busca de uma sombra onde se possa ouvir sempre um canto de Luz, Paz e Amor…
*Ailton Araújo de Carvalho, filho do M. Florêncio, é integrante do Corpo do Conselho do Núcleo Pau D’Arco (Caruaru-PE).
**Joaquim José de Queiroz é Mestre Representante do Núcleo Pau D’Arco (Caruaru-PE).