A regulamentação do uso religioso do Chá Hoasca: reflexões no Fórum Inter-Religioso do G20

| 19 Setembro, 2024

André Fagundes*

Foto: Leonardo Pauperio.

Entre os dias 19 e 22 de agosto de 2024, realizou-se em Brasília-DF o Fórum Inter-Religioso do G20 (IF20), uma plataforma global dedicada a promover o diálogo entre governos, sociedade civil e organizações religiosas. O objetivo do encontro foi desenvolver propostas que contribuíssem para o aprimoramento das políticas públicas, a promoção da paz, a sustentabilidade e o respeito à diversidade religiosa em todo o mundo.

Reconhecendo o papel fundamental que as comunidades religiosas desempenham na prestação de serviços essenciais de saúde e educação, na assistência aos necessitados, na prevenção contra conflitos e na construção da paz, o Fórum estabeleceu-se como um espaço indispensável para a troca de ideias e a busca de soluções conjuntas. Sob o tema “Não deixar ninguém para trás: o bem-estar do planeta e de seu povo”, o encontro reuniu lideranças mundiais, ministros de Estado, acadêmicos e líderes religiosos.

O Centro Espírita Beneficente União do Vegetal é uma religião que tem como base os ensinos do Rei Salomão e de Jesus, que chegaram até nós pelo seu fundador, José Gabriel da Costa, o Mestre Gabriel. A comunhão do nosso sacramento, o qual chamamos de Hoasca ou Vegetal, é estritamente religiosa e acompanha as leis do país. Com isso, reconhecemos a importância do trabalho científico e legal na regulamentação do uso do chá.

Como pesquisador especializado em liberdade religiosa, fui convidado a participar desse evento, oportunidade em que apresentei modelos dessa regulamentação.

Preparado a partir da decocção da parte lenhosa do cipó mariri (Banisteriopsis caapi) com as folhas da árvore chacrona (Psychotria viridis), este chá sagrado proporciona um estado ampliado de consciência e tem sido tradicionalmente utilizado por povos indígenas da Bacia Amazônica para fins religiosos e curativos desde tempos ancestrais. A importância do Chá Hoasca em países latino-americanos é tão significativa que, em 2008, o Peru declarou os conhecimentos e usos tradicionais do Chá Hoasca, praticados por comunidades nativas amazônicas, como Patrimônio Cultural da Nação.

Conforme apresentado no IF20, o Brasil tornou-se um exemplo no cenário global ao desenvolver uma regulamentação pioneira do uso religioso do Chá Hoasca. Essa regulamentação foi elaborada por um Grupo Multidisciplinar de Trabalho (GMT), que envolveu pesquisadores de diversas áreas, como antropologia, farmacologia, bioquímica, ciências sociais, psiquiatria e direito, além de convidados pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) e de representantes dos grupos religiosos que comungam o Chá Hoasca em seus rituais.

O resultado foi um modelo seguro e eficiente. Conforme relata o Mestre Assistente Geral Edson Lodi Campos Soares, então Vice-Presidente do GMT: “As deliberações foram alcançadas de modo consensual, respeitando as tradições religiosas e garantindo a segurança e o bem-estar dos praticantes, ao mesmo tempo em que preserva a ordem e a saúde públicas, que são responsabilidades fundamentais tuteladas pelo Estado”.

Esse amplo e cuidadoso debate culminou na edição da Resolução nº 1, de 25 de janeiro de 2010, do CONAD, que consolidou as práticas que garantem o uso religioso adequado e responsável do Chá Hoasca no país, coroando um processo de legitimação iniciado há quase 40 anos com a criação do primeiro Grupo de Trabalho do CONAD (à época, Conselho Federal de Entorpecentes – CONFEN).

A Resolução nº 1/2010 do CONAD não apenas estabeleceu normas claras e criteriosas, mas também se tornou uma referência para outros países que buscam equilibrar o respeito às expressões religiosas com a necessidade de garantir a saúde e a segurança públicas, destacando-se por sua capacidade de integrar múltiplos saberes e perspectivas.

Durante a apresentação, também foi destacada a decisão da Suprema Corte dos EUA, que, após uma investigação minuciosa, reconheceu por unanimidade o direito da União do Vegetal de ministrar seu sacramento religioso a partir do uso do Chá Hoasca em suas Sessões espíritas naquele território. Essa decisão histórica resultou na formalização de um acordo entre o governo americano e a UDV, estabelecendo um modelo de regulamentação que, ao longo de quase 20 anos, tem se mostrado altamente eficaz. Por meio desse acordo, as importações de Vegetal ocorrem sob a supervisão do Drug Enforcement Administration (DEA), sem registros de danos à saúde ou desvios para usos recreativos ou comerciais. A precisão e a eficiência desse modelo de acordo individual foram tão notáveis que o Canadá seguiu o mesmo caminho, permitindo que as remessas internacionais e os rituais religiosos aconteçam de forma ordeira e controlada.

No entanto, o exercício do direito à liberdade religiosa pelos integrantes da União do Vegetal em alguns países europeus ainda tem sido um desafio. A UDV, que tem fundamentação cristã-reencarnacionista, congrega cerca de 23 mil membros, de mais de 60 nacionalidades. Ao longo dos anos vem realizando o seu trabalho religioso em 11 países e tem enfrentado discriminação em alguns países europeus, estando injustamente impedida de registrar-se como organização religiosa e até mesmo de comungar seu sacramento – o Chá Hoasca –, em violação à Convenção Europeia dos Direitos Humanos e ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. A utilização do Chá Hoasca é indispensável à realização do ritual religioso, pois auxilia a concentração mental dos filiados, permitindo um contato com o Sagrado e facilitando a compreensão dos ensinamentos espirituais da União do Vegetal.

Durante a exposição, foi ressaltado que, embora existam terceiros que utilizam o chá de maneira recreativa e inadequada, é necessário separar o joio do trigo e não confundir usos indevidos com o uso sacramental e seguro promovido pela União do Vegetal. Penalizar uma instituição religiosa séria, com um histórico de mais de seis décadas de respeito às leis e que realiza seus rituais religiosos de forma sincera e responsável, conduzidos por pessoas devidamente capacitadas, constitui uma grave afronta à liberdade religiosa.

Para concluir, enfatizou-se que a regulamentação brasileira e o modelo de acordos adotado pelos EUA e pelo Canadá são casos bem-sucedidos de como o Estado pode, de forma efetiva, assegurar simultaneamente a liberdade religiosa e a saúde e a segurança públicas.

*André Fagundes é Vice-Diretor da Área Internacional do Departamento Jurídico da Diretoria Geral, integrante do Corpo do Conselho do Núcleo Samaúma, 3ª Região, e professor da Pós-Graduação em Direito Religioso.