Proibições gerais e o direito do uso religioso do chá Hoasca

André Fagundes*

| 20 Fevereiro, 2020

Durante a I Conferência Euroamericana para o Desenvolvimento dos Direitos Humanos, realizada nos dias 14, 15 e 16 de outubro, na Casa Municipal da Cultura de Coimbra (Portugal), foi apresentado o trabalho intitulado “O multiculturalismo e as acomodações religiosas em matéria penal: análise crítica do uso sacramental do chá Hoasca”.

Tal apresentação está inserida em um estudo aprofundado que vem sendo realizado em prol do fortalecimento da defesa institucional e da expansão internacional do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal.

Visa-se com a pesquisa doutoral e com as exposições em congressos e conferências internacionais trazer esclarecimentos dentro do ambiente acadêmico – local repleto de formadores de opinião -, de modo a contribuir no combate aos frequentes equívocos em relação ao chá Hoasca e aos grupos e religiões que o utilizam.

A mencionada apresentação examinou a viabilidade de utilização do uso religioso do chá Hoasca, mesmo quando a legislação nacional proíba o uso de bebidas que, independentemente da sua forma de preparo, contenham em sua composição o DMT (Dimetiltriptamina, alcaloide psicoativo presente nas folhas da Chacrona, uma das plantas utilizadas no preparo do chá), como tem interpretado a Suprema Corte Holandesa. Verificou-se, também, a possibilidade do uso restrito aos rituais religiosos nos países que inserem o Mariri e a Chacrona na lista de plantas proibidas, a exemplo do que ocorre na França (Lei SANP0521544A).

Identificou-se que determinadas leis, mesmo quando não visam atingir diretamente uma determinada confissão religiosa, acabam por limitar (ou até mesmo impedir) alguma forma de sua manifestação. De fato, há situações em que uma lei de aplicabilidade geral (ou seja, destinada a todas as pessoas indistintamente), considerada inicialmente como “neutra” em relação às religiões, acaba por, na prática, impingir severas restrições a determinados grupos religiosos, notadamente os minoritários.

Ocorre que o direito à liberdade religiosa – que é assegurado por diversos tratados internacionais e está na base das sociedades democráticas -, compreende o direito do indivíduo de formar estruturas sociais com propósitos religiosos e alinhar todo o seu comportamento com os ensinamentos de sua fé, podendo agir de acordo com suas convicções.

Diante disso, e em respeito à dignidade da pessoa humana e à pluralidade de confissões religiosas (próprio de uma sociedade livre), o poder estatal deve garantir aos indivíduos uma margem de autonomia e liberdade pessoal para procederem conforme suas convicções religiosas.

Deste modo, ainda que leis que não tenham como objetivo direto a restrição significativa do exercício da liberdade religiosa, caso esta venha a ocorrer, o Estado deve demonstrar que há um interesse governamental convincente na limitação adotada. Além disso, deve comprovar que a medida estatal é o meio menos gravoso para alcançar tal interesse, sob pena de incorrer, por vias transversas, em um tratamento discriminatório.

Com efeito, o Comentário Geral nº 18 a respeito do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Baseadas na Religião ou Convicção (artigo 2º, nº 2) esclarecem que a intolerância e a discriminação baseadas na religião configuram-se quando houver medidas que tenham tanto como objetivo quanto como consequência a limitação do exercício dos direitos e liberdades em condições de igualdade.

Nestes casos, por conseguinte, o Estado deve realizar uma acomodação das manifestações religiosas afetadas, isto é, criar uma exceção àquela regra geral. Do contrário, configuraria uma injusta interferência sobre o exercício da liberdade religiosa, reconhecida internacionalmente como um bem vital para o ser humano. Evidentemente isso só será possível se tais práticas não ofenderem direitos de terceiros nem violarem bens jurídicos comunitários, tais como ordem, segurança e saúde públicas.

Nas Sessões da União do Vegetal, os filiados comungam o Vegetal (denominação que a UDV usa para a Ayahuasca) de livre e espontânea vontade, sem a mistura de qualquer substância, para efeito de concentração mental, servindo para ampliar a percepção do mundo espiritual e para auxiliar na transformação dos comportamentos pessoais, rumo à perfeição do espírito.

O ritual religioso ocorre dentro de um templo com a administração de doutrina espiritual e é destinado unicamente aos sócios do Centro com a participação dos membros da Direção do Núcleo (integrantes experientes que ocupam um lugar de responsabilidade na hierarquia da instituição). Ou seja, num ambiente controlado em que os filiados se congregam sentados e são acompanhados por pessoas familiarizadas com os efeitos do chá.

Tais fatores, aliados à ausência absoluta, na instituição religiosa (em seus quase 60 anos de existência), de qualquer histórico de desvio do chá Hoasca dos fins sacramentais para fins recreativos ou comerciais, bem como os cuidados tomados na importação, armazenamento e utilização do Vegetal, serviram de fundamentos para que a Suprema Corte dos Estados Unidos concedesse em 2006, por unanimidade de votos, uma exceção na Lei de Substâncias Controladas para as Sessões da União do Vegetal.

Vale dizer que, a criação de uma exceção na lei americana que proibia bebidas que contivessem DMT em sua composição se deu, além da incontestável comprovação da inofensividade do uso religioso da Hoasca, pela seriedade e pela experiência dos dirigentes da UDV com o uso responsável do Vegetal [caso Gonzales v. O Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, 546 U.S. 418 (2006)].

*André Fagundes é integrante do Corpo Instrutivo do Núcleo Luz Boa (Lisboa, Portugal). Doutorando em Direito Público e Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra, Portugal.