AMOR DE VIOLEIRO – Um Prefácio Encanteirado
Edson Lodi*
Vejo a vela que se apaga / Vejo a luz, vejo o cruzeiro
Vejo a dor, vejo a vontade /No amor de um violeiro
No braço de uma viola / Verdade seja bem-vinda
Que acabe o choro, que seja / O amor a coisa mais linda**
Quando minha memória ainda amanhecia no mundo de Hoasca, em 1979, vislumbrei uma cena que jamais me esqueceu.
Mestre Pernambuco está sentado à cabeceira da mesa, na Sede Geral, em Porto Velho, dirigindo a sessão em comemoração ao seu aniversário. Logo após beber o Vegetal, e sem que me desse conta, vejo-me no espaço – tão só quanto antes de meu nascimento.
Com visão interior, avistei um foco de luz a cintilar na distância, capturando minha atenção. Aquela luz transformou-se em dois olhos, e entre as suas sombras surge uma cabana de madeira, um tapiri de palha. Eu me aproximo. Dentro dele, reconheço o Mestre Florêncio – em suas mãos, uma pequena caixa, feita de rústica madeira, talvez cipós.
Com os braços estendidos, a mansidão no olhar, ele me oferece humildemente aquele relicário. Por algum motivo que desconheço, não quis, a princípio, receber a oferta. No entanto, ao perceber aquela imagem diluindo-se no ar, alcanço a caixa e a tomo nas mãos. Abro-a. Dentro, uma cruz, também de madeira, bastante simples.
Abismado, voltei ao corpo instantaneamente. Nesse exato momento, o Mestre Braga levanta-se e diz, postado próximo de onde eu me encontrava:
Tem coisas no Vegetal que é preciso sair de dentro do corpo para conhecer verdadeiramente. A cruz representa uma responsabilidade, e quem a recebe tem que carregá-la e cumprir a missão.
Por muito tempo, fiquei buscando entender o significado daquela visão – a pequena cruz de madeira, suas traves amarradas por uma corda simples, elevando-se, abraçando o céu de minha vida.
Hoje, tantos anos passados, intuo que pelo menos um dos braços da cruz é a responsabilidade e a alegria de escrever este livro, que tem o objetivo de resgatar a extraordinária história do Mestre Florêncio Siqueira de Carvalho, personagem daquela inesquecível visão.
Para cumprir a gratificante tarefa, debrucei-me sobre dezenas de depoimentos, entrevistas concedidas por ele ao longo do tempo, além das que eu próprio tive a oportunidade de realizar – com seus contemporâneos, partícipes das histórias narradas, com membros de sua família.
Outra etapa que muito enriqueceu o trabalho de elaboração foi a necessária pesquisa sobre a vida dos retirantes da seca e dos seringueiros, a gente forte que travava a batalha da sobrevivência em extremos de carência – uns arrancando o alimento da terra seca e inóspita, outros às margens das águas fartas da Amazônia, e ambos sofrendo as dificuldades comuns aos extratos sociais mais explorados.
Auxiliou-me, também, meu conhecimento pessoal da floresta amazônica da região fronteiriça entre o Acre e a Bolívia, a cultura e a paisagem do local onde Mestre Florêncio cumpriu sua sina de seringueiro. Escrever este livro constituiu para mim, além disso, uma estimulante viagem pelas memórias da minha convivência com ele, e também com sua família, desde quando o conheci, no distante ano de 1976. Foram muitas as emoções experimentadas em tantas vivências. Amizade e gratidão.
Um homem singular, de tantos saberes, distribuídos em diferentes altitudes, pássaros, relevos, águas, gentes, dores e alegrias. Sua integridade permitia-lhe ser rente no caminho da retidão; mas também flexível, quando as circunstâncias assim o exigiam – sempre em honras de amor e lealdade ao seu Mestre Gabriel.
Sua história ímpar fez-me buscar uma narrativa mais fluente, na esperança de dar ao leitor a condição de penetrar de maneira mais fluida, sem rodeios, os maravilhosos enredos e cenários em que Mestre Florêncio viveu intensa e alegremente o roteiro de sua vida.
E ele transformou-a numa chama vivíssima, a propagar os ensinamentos de José Gabriel da Costa, o Mestre Gabriel, em sua missão de iluminar o mundo pela paz. Assim, despretensiosamente, Mestre Florêncio acrescenta à sua vida e à de todos os seguidores da União do Vegetal um valor espiritual que só o tempo poderá estimar mais acuradamente.
Nesse sentido, destaca-se sua visão de futuro ao gravar, num pequeno aparelho, em precárias fitas cassete, algumas sessões dirigidas por Mestre Gabriel, das quais teve o mérito de participar. Material, hoje, essencial para a preservação e o correto entendimento de algumas palavras do Mestre. Destaca-se, por exemplo, o histórico registro da sessão em que gravou o Rosário de Chamadas – uma relíquia inestimável.
Em alguns momentos, tive de ceder à impossibilidade de levantar com exatidão algumas datas, referentes a acontecimentos desenrolados há décadas. Pesquisas nesse sentido, ainda que exaustivas, feitas com esmero e dedicação, mostraram-se, por vezes, infrutíferas, impossibilitando chegar a um resultado conclusivo – o que nos pareceu inevitável, em face do tempo transcorrido e das circunstâncias que envolveram muitos dos fatos narrados. E, também, porque se trata de reconstituição feita, quase que exclusivamente, a partir de relatos de seus protagonistas.
Essa inexequibilidade e alguma inexatidão, no entanto, não comprometem a essência destas narrativas, deste inventário de acontecimentos e sentimentos. Sua essência se preservou no coração e na memória dos que tiveram a graça de experienciá-los.
Florêncio – ou Cruzeiro, nomes pelos quais se notabilizou na história da religião – é a motivação primeira e a principal fonte de informação deste O Canto do Sabiá. Sua trajetória singular pôde ser registrada por meio de incontáveis e minuciosos depoimentos e entrevistas, colhidos em épocas e contextos distintos – e ainda assim mantendo seu mesmo conteúdo.
No entanto, não posso deixar de considerar a possibilidade da ocorrência de lapsos ou de situações que possam tê-lo influenciado na valorização ou não de alguns aspectos de suas vivências, o que me fez reunir o maior número de informações possível, valendo-me também de outros olhares e percepções, de personagens que viveram as mesmas histórias, testemunhas dos mesmos acontecimentos. Espero com esse esforço ter minimizado ou, mesmo, dirimido eventuais dissonâncias.
O material objeto dessas pesquisas, em grande parte, foi a mim confiado pelo Departamento de Memória e Comunicação do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal – DMC/CEBUDV.
Ao descortinar a arqueologia dos rios, sertões e memórias por onde andou nosso personagem, mergulhei num Brasil profundo – da aridez do Nordeste aos grandes rios da Amazônia, com seus igapós e igarapés. Pude recolher, assim, pequenos inventários, vestígios de um longínquo cotidiano, na intenção de apresentar ao leitor o menino e o homem, o discípulo e o Mestre, em suas simples, e às vezes complexas, relações com a natureza.
Em sua homenagem, e buscando oferecer ao leitor a possibilidade de conhecer esta outra virtude de Mestre Florêncio – seu versátil gosto musical –, os capítulos são iniciados por epígrafes com trechos de músicas de sua preferência. Dessa forma, o leitor poderá perceber a vasta amplitude do seu repertório – Shankar, Family and Friends, grupos andinos, Raul Seixas, passando por Elomar, bandas, cantoras e cantores vários, da mais pura raiz nordestina à música instrumental e o que mais reunisse qualidade lírica ou musical para passar na eclética peneira de Mestre Florêncio.
Mas, como é natural, tendo sua artista predileta, Marinês, a Rainha do Xaxado, preferência que compartilhava com Mestre Gabriel.
Para que o leitor possa iniciar imediatamente sua jornada pelas sendas percorridas por Mestre Florêncio, resta-me apenas acrescentar que ele fez da alegria uma de suas mais firmes pegadas, e do amor a coisa mais linda de sua vida.
–
**Amor de Violeiro (Rolando Boldrin).
Publicado em 14 de abril de 2024.
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Até hoje sinto saudades do canto desse sabiá.
Belo texto. A poesia flui mas entrelinhas da prosa. Percebe-se que prenuncia um livro sinestésico, com músicas e o canto do sabiá.
Oba, mais uma obra deste grande escritor, Edson Lodi
Belíssimo. Lírico e profundo, próprio de quem adentra e conta a história com domínio das palavras, proporcionando assim maior encanto. Mais que prefácio, um prenúncio.
Esperando essa obra que com certeza irá nos fazer navegar nas mais doces memórias com esse amigo e toda essa sua história na Udv. Viva o M Florêncio!grata M Edson por sua incansável busca e trazer textos que nos fazem sentir ainda mais a beleza da UDV e o do Mestre Gabriel em nossos corações
Mestre Florêncio é um personagem ímpar na história da União do Vegetal. Autêntico como a própria vida é! O texto amadurecido de Edson Lodi foi tecido por muitos fios, que só as suas ricas experiências poderiam combinar. Vivências de uma vida inteira na busca desse olhar enlevado, investigativo e humano na sua integralidade, mapeado numa linguagem emotiva, sua poética, que nasce justamente da entrega, a sua afetuosa dedicação. Tive a honra de espiar seu novo trabalho e posso garantir que vem algo bom por aí. Emocionante! Desvelador! Imperdível!
Parabéns aos queridos familiares do Sabiá, esse homem notável. 14 de abril é dia de festa na União do Vegetal! Mestre Florêncio é um dos pilares em nossas vidas. Viva!
Abraços fraternos a esses amigos!
Estou feliz em um poder conhecer um pouco da história de vida do meu tio avô! Gratidão a M. Edson Lodi pela dedicação na escrita dessa biografia. Meu filho já está aqui no aguardo querendo conhecer mais da história do Tio Bisavô. Ele já havia lido o outro livro do mestre Florêncio contando as suas histórias na floresta, e ficou encantado. É muito bom honrar e conhecer a história dos nossos ancestrais.