Mestre Gabriel, o Mensageiro de Deus
| 14 Fevereiro, 2011
por Cristina Rego Monteiro da Luz | Fotos: Luiz Trazzi.
“ Quem é esse personagem misterioso e fascinante, que, com tão escassa escolaridade, e em meio tão inóspito, incursiona pela mais refinada filosofia e marca, com sua presença, um novo momento no processo de evolução espiritual da humanidade? É o que este livro, que não tem propósito doutrinário, se dispõe a examinar, traçando-lhe o perfil biográfico e expondo a obra que deixou.”
A biografia de José Gabriel da Costa, escrita pelo jornalista e escritor Ruy Fabiano e editada pelo CEBUDV, faz História, trazendo informações antes reproduzidas oralmente, por ocasião dos 90 anos de nascimento de Mestre Gabriel. As ilustrações, simples e expressivas, são de Marcelo Bicalho. O livro também traz um primoroso arquivo fotográfico dos ambientes e dos primeiros sócios da UDV, assim como dos familiares de Mestre Gabriel. Há fotografias tiradas por sócios das origens da UDV, como Mestre Cícero, Mestre Francisco Herculano, pelo responsável pelas pesquisas históricas da instituição, mestre Yuugi Makiuchi, por Luiz Trazzi, por Bento Vianna e por Rubens Américo Luz (fotógrafo da revista Cruzeiro, que registrou Mestre Gabriel em reportagem de 1971). São 236 páginas escritas com coração e muito trabalho de pesquisa. E como tudo que diz respeito à União do Vegetal, a colaboração de muitos foi decisiva para um resultado de grande importância afetiva, histórica e institucional.
É uma preciosa narrativa a respeito de um verdadeiro gabriel (em hebraico, mensageiro de Deus), como dito pelo próprio autor.
“A simplicidade é a marca dos grandes homens.” Ruy Fabiano.
O texto claro de Ruy Fabiano não alimenta fanatismo: começa pela contextualização de pessoas que auxiliam a humanidade a encontrar mais equilíbrio – os Mensageiros -, e a partir da descrição das circunstâncias do desencarnamento do Mestre Gabriel, mostra o vigor e a consistência do plantio e da colheita do trabalho desenvolvido com base na palavra do fundador do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. Um ciclo se estabelece – morte e vida, trabalho e conquista.
O conteúdo da obra reflete o convívio fraterno compromissado e responsável dos primeiros irmãos, assim como a dedicação daqueles que se empenharam em colher os registros da historia de José Gabriel da Costa, além do legado espiritual de Mestre Gabriel. Trata-se de um documento importante tanto para os sócios da UDV quanto para aqueles que quiserem conhecer a União do Vegetal.
O livro está organizado em duas partes: Da Bahia à Amazônia (18 capítulos) e A UDV em Porto Velho (15 capítulos). Também consta da edição um resumo da pesquisa Farmacologia Humana da Hoasca, estudo que referencia internacionalmente o estudo do Chá Hoasca, publicado na década de 90 em revistas científicas especializadas.
Na primeira parte de Mestre Gabriel, o Mensageiro de Deus, Ruy Fabiano referencia a União do Vegetal em relação às outras religiões na história da humanidade, e relata casos da vida de José Gabriel, sua infância, caminhada e o nascimento da UDV.
“Já passei por diversas religiões, procurando um jeito de auxiliar a humanidade, tirar a maldade do coração das pessoas e não encontrei. Só fui encontrar esse jeito no Vegetal.” Mestre Gabriel.
A biografia do caboclo simples que veio ser o guia espiritual da UDV está relatada em episódios que mostram as condições de sobrevivência de sua família de origem, no interior da Bahia. A religiosidade, a camaradagem, o humor e a simplicidade pertencem a uma formação familiar bem estruturada.
“O pai, desde cedo, ensinou os filhos a trabalhar. Aos dezoito anos, cada qual recebia um pedaço de terra para cultivar e auxiliar na alimentação”. Depoimento de Antonio Gabriel da Costa, irmão de Mestre Gabriel, a Edson Lodi.
As dificuldades vividas por Mestre Gabriel desde cedo para realizar sua missão, nem sempre percebidas na dimensão doutrinária conhecida por seus discípulos, são expostas aqui com mais clareza. Como quando ele sai de casa ao alistar-se como Soldado da Borracha, viaja de barco para a Amazônia e encontra a realidade dos milhares de homens chamados para colher seringa e produzir borracha a ser utilizada na 2ª Guerra Mundial:
“No porão, infecto e sem ventilação, iam os rapazes solteiros; na parte de cima, “área nobre”, mas em condições assépticas assemelhadas, viajavam as famílias. Não era permitido aos que estavam no porão, entre os quais José Gabriel, subir ao convés. Havia guardas nas escadas de acesso para impedi-lo, se preciso mediante o uso de força”.
A dimensão do que aconteceu com os Soldados da Borracha, em locais distantes dos grandes centros, foi subdimensionada por muito tempo. Só pessoas envolvidas com aqueles acontecimentos e historiadores que pesquisaram o período sabem alguma coisa sobre como foi, o que realmente aconteceu. Conta Ruy Fabiano:
“Foram convocados 57 mil rapazes, todos, como Mestre Gabriel, nordestinos, a maioria do Ceará (cerca de 30 mil). Dos 25 mil pracinhas da FEB, morreram 465; dos soldados da borracha, 30 mil. Nesse ambiente, em meio aos mais diversos tormentos, à margem dos recursos e benefícios da civilização, José Gabriel da Costa constitui família, torna-se seringueiro-modelo – um tuchaua –, exibe dons e conhecimentos singulares e começa a reunir crescente número de discípulos e admiradores. No final da década dos 50, encontra-se com o chá Hoasca (também conhecido por ayahuasca, daime ou Vegetal), sacramento da ordem religiosa que cria, e cujas origens milenares evoca, vinculando-as à tradição monoteísta judaico-cristã, renovando-a e graduando-a, com novas revelações espirituais”.
A pesquisa que mostra a capacidade de Mestre Gabriel de transformar os limites materiais da vida cabocla, seringueira, em Luz de uma alta doutrina espiritual com simplicidade é trazida à tona pelo livro, acompanhando a trajetória dele por muitos seringais: Boa Vista, Triunfo, Bom Destino, Tres Casas e Bom Jardim, Orion, Porto Luís, Guarapari. As histórias se sucedem, mostrando a determinação e a maneira como o Mestre exemplifica a Verdade pelo comportamento e pela palavra. Sempre ao seu lado, a esposa Pequenina, valente companheira de todos os momentos, aparece em muitas situações, como na vez, aos 23 anos, em que pegou para si a responsabilidade do sustento no seringal até que Mestre Gabriel ficasse curado da ferida provocada por um ferrão de arraia.
“Cuidava da casa, cozinhava, pescava e cortava seringa. Gabriel, convalescente, auxiliava em tarefas domésticas e com as crianças. Não tinha condições físicas de ir além. O acidente não apenas o inviabilizara temporariamente como seringueiro, como pusera em risco a situação da família. A condição da mulher nos seringais era precária, para dizer o mínimo. Era uma espécie de animal doméstico, sem qualquer autonomia. Se enviuvasse ou se o marido ficasse incapacitado de trabalhar, como era o caso, era forçada a servir a outro seringueiro. (…) Diante da notícia de que seu marido estava doente – e, portanto, fora de combate –, foi procurada em casa por alguns capangas do seringal, que tencionavam levá-la. Recebeu-os de espingarda em punho, recusando-se a acompanhá-los. Eles se intimidaram diante daquela determinação incomum, considerando-a “doida”. Ela lhes disse que fizera um juramento de ter Gabriel como marido para sempre e que o cumpriria a qualquer custo. Que não duvidassem: ela não serviria a mais ninguém. Não duvidaram.”
Recuperado, Mestre Gabriel seguiu no cumprimento de sua missão. No livro estão descritos alguns dos mais significativos momentos do encontro do Mestre com o Chá Hoasca, que aconteceu através de outros seringueiros e homens que já comungavam o chá sem rituais, e sem doutrina. Nestes encontros evidencia-se diferenciado o comportamento de Mestre de José Gabriel da Costa em relação aos demais:
“Antes de distribuir o Vegetal, Chico repetiu o rito anterior das orações. E benzeu cada uma das pessoas com a lamparina: “Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo”.
Iniciada a sessão, a força da burracheira se apresentou com intensidade incomum, fora do controle de Chico, que dirigia os trabalhos. Gabriel estava deitado na rede, tranquilo, observando (…)As pessoas estavam assombradas com o que viam. Um dos participantes disse ter visto o diabo, e pediu socorro aos gritos.”
O livro descreve como Mestre Gabriel auxiliou as pessoas a serenarem e depois, como chamou a atenção de Chico Lourenço, responsável por aquela distribuição.
“Gabriel então levantou-se da rede e foi em direção a Chico Lourenço, e o repreendeu “Olha, Chico, isso aqui é uma coisa de Deus, coisa séria. Você não sabe trabalhar, mistura muita coisa. Quem dá esse chá é responsável pelas pessoas”.
As vivências do Mestre e sua família, os atendimentos, a manifestação do Sultão das Matas (ele mesmo) nos terreiros de umbanda e as orientações que se tornam registros da História da descoberta do tesouro do Mestre – o Chá Hoasca – , até a formalização da União do Vegetal, estão relatadas com riqueza de detalhes. É a História da religião que o Mestre Gabriel criou com pessoas simples, do interior do Brasil, para que, no tempo certo, chegue a todos aqueles que, por sentirem essa necessidade, buscarem orientação.
“A humanidade não sabe o que é o espírito. Por isso, vive atrapalhada. Eu vim tirar o povo do atrapalho.” Mestre Gabriel
Na segunda parte do livro, Mestre Gabriel, já com oito filhos, está em Porto Velho. Tem início o que pode ser identificado como a institucionalização da União do Vegetal. Trata-se do ano de 1964. Mestre Gabriel chega à sua casa na rua Abunã em 1º de janeiro de 1965.
Tem início a formação dos quadros de associados da UDV e da estrutura básica de uma organização que hoje já reúne cerca de 20 mil pessoas em vários países. A primeira sessão, em 6 de janeiro, foi na sede do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento Tattwa. Para os primeiros chegarem ao grau de Mestre havia um concurso, que consistia em contar corretamente a História da Hoasca. Nove discípulos contaram a História, assim que mestre Gabriel estabeleceu o concurso – apenas um foi reprovado. Havia três que foram graduados ainda nos seringais: Mestres Pequenina, Bacurau e Pernambuco. Outros onze conseguiram graduar-se na sequência, formando um quadro de 23 Mestres. Todos estão nominalmente citados no texto.
“À medida que aumentava o número de sócios, tornando-se impraticável acolhê-los a todos no barracão da Sede, o Mestre decidiu criar dois grupos de frequentadores, passando a realizar duas sessões por semana: uma, às quartas-feiras; outra, aos sábados.”
É memorável a descrição da chegada dos Mestres, os mesmos que pouco tempo depois tornaram-se responsáveis pela preservação da doutrina de Mestre Gabriel, sempre em linguagem simples:
“Simples, mas jamais banal, como veremos adiante. “As coisas de Deus”, disse ele (Mestre Gabriel), “são para todos”. É ainda Raimundo Monteiro quem recorda: – Minha primeira sessão foi inesquecível. Realizei uma viagem Astral que me pareceu ter durado menos de um minuto. Vi que estava diante de um homem que não era qualquer um. Raimundo Carneiro Braga, que chegara um ano antes, precisou participar de nove sessões para sentir a burracheira.”
Com estas pessoas Mestre Gabriel deixou escritas as leis da UDV (Estatuto, Regimento Interno e Boletins da Consciência), preservados para sempre: … “de vigência permanente, mesmo nas grandes cidades, agregando todas as classes sociais, inclusive doutores formados em universidades de renome, no Brasil e no exterior, que hoje compartilham de sua direção.”
O 22º capítulo é dedicado ao surgimento do arco, do uniforme e da música na UDV. Nos capítulos subseqüentes, estão os relatos a respeito das relações institucionais com os poderes estabelecidos – a prisão do Mestre, as tentativas de interromper as atividades do Centro e a incompreensão de autoridades de outras religiões.
A participação de Giovanni, um discípulo que poucas sessões assistiu, no surgimento do texto dos Mistérios do Vegetal, lido em todas as sessões de escala da UDV, é detalhada no capítulo 26, mostrando mais uma vez a misteriosa capacidade de Mestre Gabriel e a diferença entre a lógica racional e os desígnios superiores.
Depois de um capítulo dedicado às características do Chá Hoasca, um capítulo traz casos vividos e relatados pelos Mestres feitos por Mestre Gabriel, comprovando o conhecimento e a capacidade diferenciada do Guia da União do Vegetal. Histórias vivenciadas por Mestre Pernambuco, Mestre Joanico, Mestre José Luiz, Mestre Bartolomeu, Mestre Roberto Souto, Mestre Braga, Mestre Cícero, Mestre Manoel Nogueira, Mestre Monteiro, que antes só podiam ser conhecidos em conversas de roda de amigos depois das sessões, ou mesmo eventualmente durante as sessões, agora estão preservadas para a História.
Os Capítulos dedicados à palavra do Mestre, à Doutrina e aos Fundamentos da UDV , assim como o que aborda os aspectos do Sincretismo e da Revelação, são análises e reflexões para um exame da forma como Mestre Gabriel trouxe a Verdade, facilitando a compreensão em todos os níveis de capacidade humana.
Finalmente, a hospitalização do Mestre com o relato de seus derradeiros dias nesta encarnação e a perspectiva da Missão Cumprida. Como sempre generoso, Mestre Gabriel cria e ensina, mas não retém o conhecimento. Mostra o caminho para aqueles que virão, e aqueles que participaram destes primeiros momentos estão retratados na galeria de fotos de Mestres fundadores do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. Também foram selecionadas para o livro as fotos históricas e o fac-símile do texto “Convicção do Mestre”, publicado no jornal Alto Madeira, em outubro de 1967, logo após a prisão do Mestre. Ainda compondo o conjunto de documentos profundamente esclarecedores a respeito da União do Vegetal e do Chá Hoasca, a publicação traz o resumo da Pesquisa Farmacologia Humana da Hoasca.
Como está claro, este livro traz uma compilação dos principais temas e documentos para informações a respeito de Mestre Gabriel, do Chá Hoasca, do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal e de sua irmandade. Um presente pelo 90º aniversário de Mestre Gabriel para uma ainda maior condição de preservação e acesso ao conhecimento da História de uma religião que pretende contribuir para uma Paz no mundo.
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