Mestre Gabriel e a busca pela paz

| 28 Julho, 2021

Tito Liberato*

Seringal | Arte: Ricardo de Deus (DMC/SG).

No fim da Primeira Guerra Mundial, a humanidade parecia experimentar novamente um ciclo de paz. No entanto, o embate entre forças políticas expansionistas fariam eclodir a Segunda Guerra, de maiores proporções e maior letalidade que a Primeira.

Em 1943, o Japão bloqueou as rotas de fornecimento de borracha provenientes da Malásia, dificultando o acesso à matéria-prima pelos Aliados, imprescindível para fabricação de utensílios militares.

Como saída, foi firmado entre Brasil e Estados Unidos um acordo em que nos comprometíamos a entregar toda produção de borracha por 5 anos. Nessa cooperação, estava previsto expressivo aumento de produção, que demandava ampla estrutura de produção, armazenamento e exportação, sem esquecer, sobretudo, dos trabalhadores para extração do látex.

Era a Batalha da Borracha.

A campanha

Além da mobilização em torno da coleta entre a população de todo tipo de borracha reutilizável, o Governo arregimentou cerca de 57 mil pessoas para irem coletar látex da seringa, árvore abundante na Amazônia.

Para incentivar o engajamento, por meio do Serviço de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (SEMTA), foi disseminada uma campanha com promessas de enriquecimento e facilidades para engajar-se, incluindo um kit com calça azul, blusa branca, chapéu de palha, um par de alpercatas, caneca, um prato fundo, um talher e uma rede, além do transporte até os seringais. O SEMTA cooptava, sobretudo, solteiros capazes de trabalhos duros e que pudessem resistir às agruras das florestas tropicais. Nesse cenário, o sertanejo mostrava-se o mais apto, pois acostumado a trabalhos braçais e às intempéries da natureza. Como retratou o escritor Euclides da Cunha, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”.

Prometia-se uma vida melhor na Amazônia, mas omitia-se a dureza da vida na floresta, uma realidade bem diferente daquela prometida pelos órgãos do Governo.

Era decerto uma vida nova, mas num ambiente em que era necessário lutar bravamente para sobreviver. Tão precárias eram as condições e tão duro o cotidiano que, estima-se, apenas metade dos voluntários sobreviveram à lida dos seringais. O Mestre Gabriel era um deles.

O soldado da borracha

Em 1943, aos 22 anos, José Gabriel da Costa (Mestre Gabriel) alistou-se como soldado da borracha. Partindo do porto de Salvador (BA), rumou para Belém (PA) no navio do Lloyd Brasileiro, numa viagem que costumava durar até 3 meses, em condições precárias e enfurnado no porão, com risco de naufrágio por falta de manutenção ou por ataque dos submarinos alemães. De Belém, seguiu para Porto Velho (RO) em outra embarcação.

Na extenuante rotina do seringueiro, começava-se a cortar seringa às 4h da manhã e findava-se por volta de 19h, em floresta densa que, além da exposição a doenças como malária, beriberi e febre-amarela, havia onças, cobras e outros animais perigosos, como a arraia que ferrou o Mestre Gabriel, deixando-o incapacitado para o trabalho por 1 ano e 10 meses, período em que sua esposa e companheira, Mestre Pequenina (Raimunda Ferreira da Costa) , encarregou-se do serviço para manter o sustento da família.

Os soldados da borracha viviam submetidos a um sistema de trabalho conhecido como “aviamento”, por meio do qual o patrão (seringalista) adiantava alguns bens de consumo (comida, roupa, arma, remédio e outras utilidades), além dos instrumentos de trabalho, e posteriormente eram ressarcidos com produtos agrícolas e látex. Muitos trabalhadores, portanto, viviam anos recebendo produtos do patrão, vendidos pelo dobro do preço, sem receber pagamento em dinheiro, o que impossibilitava sair em busca de outra ocupação, num regime muito próximo à escravidão. O seringueiro que tentasse fugir estando em dívida com o patrão poderia ser preso ou morto. O primeiro seringal que o Mestre Gabriel foi alocado chamava-se Boa Vista.

Naquele ambiente hostil, Mestre Gabriel mostrou sua resistência e capacidade, chegando a lograr o título de “tuxaua”, dado àquele que se destacava entre os seringueiros, e ainda constituiu família, angariou duradouras amizades, fez seus primeiros discípulos e formou os primeiros Mestres depois de encontrar o Tesouro que estava destinado a encontrar, trazendo do seio da densa floresta para toda a humanidade.

A busca pela paz

Em 22 de julho 1961, quando morava com sua família naquele ambiente adverso dos seringais, arregimentado para um movimento voltado a fornecer suprimento para uma Guerra Mundial, o Mestre Gabriel declarou criada a União do Vegetal, com o propósito de unir as pessoas sob o símbolo da Luz, da Paz e do Amor.

Em 1965, após algumas saídas e retornos aos seringais, o Mestre Gabriel e sua família deixaram a vida na floresta e fixaram-se definitivamente em Porto Velho/RO. Neste período, dedicou-se a estabelecer a estrutura da União do Vegetal, registrou seu Regimento em cartório, trouxe novos discípulos, formou o Quadro de Mestres que daria seguimento ao trabalho espiritual que fundara. Lá permaneceu até 1971, ano em que, após retornar de um período em que esteve hospitalizado no Ceará, seguiu para o Hospital de Base de Brasília, onde fez a passagem, deixando imensa saudade entre seus discípulos.

Após enfrentar as agruras de uma guerra que nunca foi sua, nos legou uma religião que prega o amor ao próximo como caminho para plantar o sentimento de irmandade no coração do ser humano e assim estabelecer não apenas uma pausa entre duas guerras, mas uma fraternidade duradoura entre as nações, a verdadeira e tão desejada paz.

*Tito Liberato é integrante do Corpo do Conselho e monitor do Departamento de Memória e Comunicação (DMC) da Sede Geral (Brasília-DF). 

25 respostas
  1. Nilzete Gonçalves
    Nilzete Gonçalves says:

    Lendo este relato tão transparente e verdadeiro, citando aqui com tamanha apresentação do que foi a vida do Mestre Gabriel nesta selva chamada Amazônia, eu vi tão grande é o caminho a paz, sendo esta paz colocada para nós como tbm o nosso objetivo na caminhada como hoasqueiros que somos. Essa paz têm como objetivo maior nos resgatar como seres humanos e nos colocar como verdade a vida, sendo a vida do mestre e a nossa vida. Estou encantada com tamanha dificuldade que foi para o mestre Gabriel e sua família naquela época, onde se vivia com muito pouco, mas que ainda assim dentro de um homem se realizava a sua história, deixando para nós tbm, o começo da nossa história. Esse é o verdadeiro sentido da vida, criar em cada um de nós, uma história consistente, como a do mestre Gabriel, nos dando o exemplo, que mesmo nas dificuldades a vida pode ser sim realizada com amor e paz. Eu sou grata a este mestre, que ao meio de tantas dificuldades pode criar uma vida de Paz e de certeza que quando se quer, podemos transformar.

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  2. Regina Borowski
    Regina Borowski says:

    Excelente trabalho. Quando se contextualiza a vida da sociedade daquela época, principalmente dos seringueiros, e possível sentir o amor do Mestre e família e dedicação à obra!

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  3. Nelson de Oliveira Luz
    Nelson de Oliveira Luz says:

    Que orgulho saber da bravura deste ser iluminado, tinha uma missão, ajudar o povo da borracha, sofredor valente, no fundo tinha um coração em busca da Paz , do Amor, Mestre Gabriel proporcionou aquele povo simples, um pouco de conhecimento espiritual, que proporciona muita paz e amor.

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  4. Alba Regina Souza Liberato de Mattos
    Alba Regina Souza Liberato de Mattos says:

    Síntese que reflete em breve narrativa a grandeza desse ser humano que habitou entre nós com o objetivo declarado de trazer- nós a verdadeira felicidade, uma vida pacifica e profícua em prol da evolução espiritual.
    Parabéns, Conselheiro. Que pelo talento de sua palavra continuemos recebendo esses momentos de nossa amada religião, fazendo-nos mais gratos por merecer a ela pertencer.

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  5. Ângelo José de Moura
    Ângelo José de Moura says:

    Linda história! Como deve ter sido difícil trabalhar começando de madrugada e terminando tão tarde…na floresta densa. Quanto frio, calor e suor, doenças… mas o mestre perseverou sem desanimar. Homem forte, virtuoso e amoroso! Uma lição de vida. Devemos aprender a parar de reclamar e em vez disso perseverar com otimismo dentro da realidade. Obrigado mestre, por tua luz, paz e amor.

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  6. Valmir Aguiar
    Valmir Aguiar says:

    História e trajetória de um grande homem e sua missão pra equilibrar seus discípulos, e que somos todos nós.
    Viva o Mestre Gabriel no coração de todos nós.

    Valmir Aguiar

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  7. Firmo Rodrigues
    Firmo Rodrigues says:

    A cada relato bendito, como esse do nosso Mestre, me vem a certeza do talento e da grandeza espiritual que esse ser iluminado trouxe para toda a humanidade! Feliz somos nós que pertencemos a essa grande obra, trazida com grande sacrifício e amor por essa grande luz divina! Grato, Tito Liberato.

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  8. Jairo de Almeida Silva Júnior
    Jairo de Almeida Silva Júnior says:

    Obrigado pelo texto. É muito bom conhecer mais detalhes da história do Mestre Gabriel e ver como foi o início desse tesouro que é a UDV para a humanidade.

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  9. Thereza Martha
    Thereza Martha says:

    Artigo de forte densidade histórica, que nos faz ter uma vaga ideia da vida dos seringueiros “soldados da borracha” em tempos de guerra e as dificuldades que o Mestre teve que vencer junto de sua companheira M. Pequenina e família! Um exemplo de construção da Paz! Grata, C. Tito!

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  10. Maria da Glória Ortiz do Nascimento
    Maria da Glória Ortiz do Nascimento says:

    Que história linda, um bravo guerreiro que ao invés de guerra, lutava naquele momento pela Paz e até hoje vivemos um tanto dessa paz recriada. Gratidão por esse legado que com amor presenteou-me, guardo em meu coração.

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  11. Sandete Ferrão
    Sandete Ferrão says:

    Exelente trabalho
    Onde podemos ver a grandeza deste ser iluminado que com simplicidade e maestria nos trás o caminho da PAZ.
    Parabenizo o C. Tito Liberato por nos prestar relatos tão importantes sobre a vida do nosso Guia Espiritual.

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  12. Marcio Armando
    Marcio Armando says:

    Inspirador relato histórico, mostrando a dura realidade que enfrentaram os soldados da borracha, e entre eles, nosso Mestre. Que esperou com paciência e sabedoria o momento certo para trazer a União do Vegetal para a humanidade, desta vez de forma definitiva. Viva a União do Vegetal!

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  13. Tatiana
    Tatiana says:

    Excelente relato! Quando vemos a vida do Mestre no contexto da história vemos também a necessidade das coisas. Gratidão a esse Mestre que tanto nos tem auxiliado!

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  14. José Radier
    José Radier says:

    Grato pelo primoroso texto, C. Tito! Com simplicidade e poesia, mostrando os passos de quem esteve com “os pés no chão e a cabeça no além”. Viva aos 60 anos da UDV!

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  15. Lita Passos
    Lita Passos says:

    Parabéns, C. Tito Liberato, por trazer pra nós de forma bem sistematizada e sensível, essa história que toca nossa consciência, e nos mostra o sentido, valor e grandeza da missão do nosso Mestre Gabriel de fazer uma paz no mundo.

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