Legalidade do uso sacramental do Chá Hoasca é tema na Universidade de Oxford
André Fagundes*
| 11 Outubro, 2019
A legalidade do uso sacramental do Chá Hoasca foi um dos temas abordados durante o curso Direitos Humanos e Liberdade Religiosa: sistemas da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA), realizado no dia 9 de julho de 2019, no Regent’s Park College da Universidade de Oxford, no Reino Unido.
O curso – que visa a capacitação de juristas e legisladores de diversos países sobre temas relacionados às Liberdades Civis Fundamentais e aos Direitos Humanos, notadamente a liberdade de religião e de crença – foi lecionado por professores de notoriedade internacional, como os Drs. Mervyn Thomas[1], Mark Hill QC[2], David Taylor[3] e Thomas Schirrmacher[4].
Na aula intitulada A tutela da liberdade de religião e de crença no Tribunal Europeu de Direitos Humanos, foram analisados criticamente diversos casos julgados pela Corte Europeia, dentre eles, o que tratou da legalidade do uso sacramental do Chá Hoasca. Posteriormente, comparou-se o entendimento da Corte com os tratados internacionais que versam sobre o tema e com as decisões judiciais que analisaram o reconhecimento do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV) como organização religiosa em Portugal, Espanha e Reino Unido.
Verificou-se que o direito à liberdade religiosa, assegurado pelo artigo 9º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, garante, fundamentalmente, que todas as pessoas têm o direito de ter e de mudar de religião ou de crença, podendo manifestá-las livremente, de forma individual ou coletiva, em público ou em privado, através da celebração do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos.
Muito embora o direito à liberdade religiosa não seja garantido em termos absolutos, para que o Estado interfira em tal direito deve dispor de uma justificação suficientemente forte, que demonstre preenchidas as condições estabelecidas no Nº 2 do art. 9º, a saber: a ingerência estatal deve estar prevista em lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança pública, para a proteção da ordem, da saúde e moral públicas, ou para a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros.
Ao aprofundar-se sobre essa questão, examinou-se o caso do pedido de licença da União do Vegetal para importar e ministrar o Chá Hoasca durante os rituais religiosos no Reino Unido. Não obstante a Administrative Court of the Queen’s Bench Division of the High Court of Justice tenha argumentado que a decisão do governo se deu em função da suposta insuficiência de estudos sobre o uso do Chá a longo prazo, e que “não há uma presunção em favor da concessão de uma licença”, a Corte britânica deixou de observar que o regime jurídico aplicável ao direito à liberdade religiosa garante, como regra geral, o amplo exercício das práticas religiosas. Vale dizer, a restrição dos direitos consagrados na Convenção Europeia de Direitos Humanos é a exceção, não a regra. A regra, ressalte-se, é o pleno exercício.
Decorre disso que, no âmbito processual, o ônus probatório incumbe ao Estado e não à confissão religiosa. Deste modo, caberia ao governo ter que demonstrar que a comunhão do Chá Hoasca coloca em risco um bem comunitário (no caso, a saúde pública). Ocorre que a invocação de um interesse público objetivando limitar o exercício de um direito fundamental não pode, evidentemente, vir desacompanhada de provas, sob pena de legitimar a atuação de um Estado totalitário. Aplica-se, aqui, o célebre brocardo latino allegatio et non probatio quase non allegatio, que, no vernáculo, significa: “alegar e não provar, corresponde a não alegar”.
Assim, não pode o Estado fundamentar-se em meras especulações em detrimento dos sérios estudos científicos existentes. Ainda mais, em razão do robusto conjunto de pesquisas científicas carreado aos autos sobre o uso do Chá Hoasca, em que “os resultados encontrados reafirmam as observações empíricas nos diversos grupos que utilizam regularmente este Chá em seus rituais religiosos, onde pessoas que fazem o uso por 30 anos ou mais se apresentam saudáveis, lúcidas e cujo perfil de morbidade não é diferente das outras pessoas das comunidades onde vivem.” (GROB, Charles. et al. Farmacologia Humana da Hoasca – Estudos Clínicos).
Vale destacar, ainda, que a aquisição e utilização do Chá Hoasca para fins sacramentais estão inseridas no âmbito da proteção conferida pela liberdade de culto. Com efeito, conforme esclarece a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Baseadas na Religião ou Convicção, o direito à liberdade de religião compreende a liberdade de “confeccionar, adquirir e utilizar, em quantidade adequada, os artigos e materiais necessários relacionados com os ritos ou costumes de determinada religião ou convicção” (artigo 6, alínea c).
Ora, do mesmo modo que, para alguns cristãos, a Eucaristia é uma forma de comunhão com Deus, os membros da União do Vegetal têm a Hoasca como seu sacramento religioso, que é indispensável à celebração do culto. Identificou-se, portanto, que o impedimento de importação e utilização do Chá Hoasca exclusivamente para fins sacramentais configura grave e injustificada discriminação religiosa, incompatível com os compromissos assumidos perante a comunidade internacional.
>> Leia também: O Direito Penal e as minorias religiosas hoasqueiras na Espanha
*André Fagundes é integrante do Corpo Instrutivo do Núcleo Luz Boa (Lisboa, Portugal). Doutorando em Direito Público e Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra, Portugal.
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1 – Fundador e Diretor Executivo da Christian Solidarity Worldwide (CSW). Diretor da Religious Liberty Partnership. Membro do Grupo Consultivo do Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido para a liberdade de religião ou crença.
2 – Professor honorário do Centro de Direito e Religião da Universidade de Cardiff; Professor da Universidade de Pretória; Professor Visitante no King’s College, Londres.
3 – Professor e analista de relações internacionais. Presidente do conselho de curadores da Christian Solidarity Worldwide (CSW) e da Religious Liberty Partnership, em questões sobre liberdade religiosa internacional.
4 – Doutor em Teologia e em Filosofia e Ph.D. em Antropologia Cultural. Presidente do Conselho Internacional da Sociedade Internacional para os Direitos Humanos e Embaixador para os Direitos Humanos da Aliança Evangélica Mundial.
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Legal!
Ter uma pessoa como o André em nossa religião é uma referência muito boa…..
Muito bem esclarecido.
Parabéns pela matéria, creio ser bem esclarecedora a opinião publica em geral e comunidade cientifica.
Que a liberdade prossiga sempre a favor do que é correto e a favor do bem maior!
Parabéns pela matéria e pelo espaço que o assunto vem tomando no âmbito científico e internacional.
Achei o texto de difícil leitura para os leigos em termos e estruturas jurídicas.
Quanto ao conteúdo do texto a conclusão é que o impedimento do uso do chá no Reino Unido trata-se de discriminação religiosa?
Confesso que comecei a ler feliz achando que teria alguma novidade nesse sentido.
Vamos aguardar!
RESPOSTA: Sim, trata-se de discriminação religiosa.
A Declaração que mencionei no texto fala expressamente que configura discriminação religiosa quando a restrição “tenha como objetivo ou consequência a supressão ou limitação do (…) exercício dos direitos humanos e liberdades fundamentais em condições de igualdade.” Art. 2º, n. 2.
(André Fagundes)
Muito bem explicado.
Matéria elucidativa que nos convida ao exame, pois percebe-se uma dose de intolerância na corte do Reino Unido, ao contrário do que poderíamos pensar de um país de primeiro mundo. A crença religiosa com razão e legalidade perante a União Europeia, porém sendo discriminada por um (ainda) estado membro do grupo. Venceremos
Parabenizo o texto! Gostei muito dos argumentos jurídicos, pois são bem consistentes, ao mesmo tempo também nos traz uma reflexão: por que o uso ritualístico religioso da ayahuasca ainda é tratado pelas autoridades como assunto de saúde pública e de polícia ao invés de um direito fundamental à liberdade religiosa? Essa indagação nos traz mais responsabilidade quanto ao uso do Vegetal de maneira responsável e consciente, sem fins recreativos e lucrativos, para que as autoridades enxerguem cada dia mais o nosso respeito pelo Vegetal (nossa “comunhão com Deus”). Ao final da leitura desse texto, surgiu em mim também a cobrança de um compromisso perante o Vegetal – Mestre Gabriel – de ser cada dia mais um ser humano melhor dentro e fora da Irmandade a qual eu frequento, pois vejo que é “pelos frutos se conhece a árvore”.
Heloísa Marinho Cunha
Parabéns pela forma e conteúdo da sua explanação.
Seguimos firme na caminhada.
Grato pela matéria, bem esclarecedora!
Muito bom ter pessoas de capacidade na nossa UDV!