Inventário Cultural da Ayahuasca
Por Edson Lodi*
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É imensa a importância e a profundidade das práticas culturais ayahuasqueiras neste país de grande diversidade, plasticidade e capacidade de articulação e integração sincrética nos planos ético e estético vinculados a práticas religiosas.
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Em 2008, fui convidado pela deputada Perpétua Almeida (PCdoB/AC) para um encontro na Assembleia Legislativa de Rio Branco, Acre, com algumas das principais lideranças ayahuaqueiras do estado. Contamos com a presença dos assessores da deputada, Paulo de Tasso e Fátima Nobre, e também de membros da direção da União do Vegetal (UDV) em Rio Branco. Iniciou-se, na ocasião, um grande passo para o reconhecimento, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), do uso ritualístico da Ayahuasca como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira.
Na sequência, naquele mesmo ano, foi entregue ao então ministro da Cultura Gilberto Gil, por ocasião de sua visita ao Acre, um documento solicitando o registro do “Uso Ritual da Ayahuasca” como Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira, assinado pelos responsáveis das Fundações Culturais do Estado do Acre e do Município de Rio Branco e pelos dirigentes do Alto Santo, da Barquinha e da União do Vegetal.
Ainda que não pairem dúvidas quanto à legitimidade do uso do chá Ayahuasca nos rituais religiosos, conforme resolução do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), construída após amplo debate entre os segmentos mais representativos do uso da Ayahuasca nos centros urbanos, persistem preconceitos motivados, em grande parte, pelo desconhecimento do assunto.
Estes embates com o poder público têm sido oportunidades singulares para o avanço neste processo de institucionalização, mesmo que o primeiro momento deste embate ocorra sob o símbolo do preconceito, da repressão e da falta de conhecimento do poder público e da sociedade mais ampla em relação às religiões ayahuasqueiras. Todavia, sabemos que não existem acasos. E o que parece coincidências são, na verdade, sinais, caminhos deixados. As pedras no caminho muitas vezes são o caminho das pedras. Então, onde nós encontramos uma dificuldade, uma prisão, uma repressão, na verdade às vezes é a abertura para uma realização futura. (Alves apud Bernardino Costa, 2011, p. 250)
O momento é oportuno para reiniciar a busca de novos parâmetros, na continuidade do diálogo com o Estado, que possam demonstrar a contribuição cultural do uso da Ayahuasca à sociedade brasileira, além dos aspectos jurídicos e farmacológicos – etapas que já nos parecem vencidas. Caminho este já apontado pela requisição encaminhada ao Conselho Federal de Entorpecentes (Confen), em 1985, em defesa do uso ritualístico da Ayahuasca: A solicitação de reexame da matéria, inclusive sob os aspectos de ordem sociológica, química, farmacológica, antropológica, cultural e jurídico-constitucional, prende-se ao fato de a referida substância ser utilizada na preparação de um chá, por algumas entidades de cunho religioso, dentre elas o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, sociedade esta com cerca de 2.000 sócios, sendo já reconhecida como de Utilidade Pública em diversos lugares. (Confen, 1985)
Sentiu-se, portanto, a necessidade de voltar nosso olhar – até então diligente no trato das questões químicas, farmacológicas e jurídicas –, para os aspectos antropológicos e culturais envolvidos no uso ritualístico da Ayahuasca. Este é o momento de se debruçar sob este grande manancial e nele resgatar, registrar, inventariar e salvaguardar as expressões culturais e a imensa variedade de saberes, ofícios e celebrações, presentes na cosmologia ayahuasqueira.
É imensa a importância e a profundidade das práticas culturais ayahuasqueiras neste país de grande diversidade, plasticidade e capacidade de articulação e integração sincrética nos planos ético e estético vinculados a práticas religiosas. Já entre os povos indígenas amazônicos contratados no período colonial, há registros de que o uso ritual da Ayahuasca se coadunava com intensas trocas culturais e materiais. Estudos antropológicos recentes, por exemplo, apontam para o caráter mediador da Ayahuasca. Estes povos também estão convidados a participar deste Inventário Cultural, que é o primeiro passo nessa direção. O que significa este inventário? Podemos conceituá-lo simplesmente como a realização de pesquisas que nos possibilitem maior conhecimento do bem cultural em questão.
Portanto, a solicitação deste registro – cuja primeira etapa é a realização do Inventário Cultural – tem como objetivo a preservação de bens de valor histórico e cultural. Todavia, é utilizado somente para o caso de bens de natureza imaterial, que podem ser festas, rituais, conhecimentos, costumes, lugares e modos de fazer, entre outros aspectos das tradições culturais de determinado grupo, neste caso, as comunidades ayahuasqueiras. O registro só é concedido quando é caracterizada sua importância para a formação cultural da sociedade brasileira, o que para a nação ayahuasqueira é de grande valia.
A empresa Marques & Barbosa Ltda., de Rio Branco, ganhou a licitação promovida pelo IPHAN/AC para iniciar o levantamento preliminar de material bibliográfico e documental acerca dos principais bens culturais da Ayahuasca e de seus articuladores. Tal trabalho irá subsidiar a realização das duas etapas posteriores do inventário, de modo a permitir a avaliação da pertinência do registro da Ayahuasca como Patrimônio Histórico Imaterial do Brasil.
Os pesquisadores que compõem a equipe são: Marcélia Marques do Nascimento, Sandra Lúcia Goulart, Wladimyr Sena Araújo, Flávia Burlamaqui, Sergio Polignano, Edward MacRae, Marcos Vinicius Neves e Edson Lodi.
Essa equipe esteve reunida em Rio Branco dos dias 15 a 17 de fevereiro de 2012. Durante este período, aconteceu o Curso de Capacitação em Rio Branco, do qual participaram o superintendente do IPHAN no estado e técnicos da instituição. Estiveram presentes ainda representantes de comunidades indígenas, funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai) e pesquisadores responsáveis pelo inventário do “Uso Ritual da Ayahuasca”.
Um dos objetivos dos pesquisadores é ampliar ao máximo as possibilidades para que os grupos ayahuasqueiros sejam comunicados das atividades e que se sintam motivados a participar deste inventário. Para isso, será elaborado e distribuído um folder com explicações didáticas sobre o que significa e o que representa esse trabalho. Com relação às comunidades indígenas que fazem uso da Ayahuasca, será promovido pelo IPHAN um seminário para discutir amplamente o tema. A decisão de participar ou não do inventário ficará a cargo das lideranças indígenas.
O que se pretende com este inventário é ter elementos suficientes para, após o registro, fazer jus ao título de Patrimônio Imaterial da Cultura Brasileira, o que nos permitirá receber ações de preservação e valorização por parte do poder público.
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*Jornalista e poeta, pertencente ao Conselho de Administração Geral do CEBUDV