O “Sabiá” do Mestre
Pedro Bringel*
| 14 abril, 2019
Florêncio Siqueira de Carvalho nasceu no dia 14 de abril de 1932, no município de Juazeiro do Norte-CE. Na data de hoje, estaria fazendo 87 anos. Assim como milhares de nordestinos, emigrou de sua terra natal, na metade do século 20, para tentar a vida nos seringais da Amazônia. No norte, era conhecido por Cruzeiro, e assim era chamado no seu início na União do Vegetal. Chegou ao Quadro de Mestres com esse nome. Somente anos depois é que passou a ser chamado de Mestre Florêncio.
Antes de conhecer o Mestre Gabriel, Cruzeiro trabalhou durante anos na selva amazônica, extraindo látex das árvores e tendo uma vida simples e estritamente ligada à ordem da natureza. Passava meses sem ver uma pessoa sequer, sozinho em meio à mata. Com isso, teve de viver à própria sorte e se adaptar àquela realidade, desenvolvendo mecanismos que auxiliassem sua orientação na floresta.
À noite, conseguia saber que horas eram por meio do “Sete Estrelas”, uma constelação que, segundo ele, “nasce no Norte e se põe no Sul”. Pela manhã, orientava-se graças à luz do Sol, colocando uma mão sobre a outra, em forma de cruz, e marcando com o dedo. A sombra formada pela luz indicava o horário. De acordo com ele, “naquela época em que a Amazônia era Amazônia mesmo, caboclo não tinha relógio, não tinha nada. Ele tinha de se virar com a natureza mesmo”.
Na selva, um de seus únicos pertences era um antigo rádio Transglobo, que lhe fora dado pelo seu patrão por ser o seringueiro mais produtivo do barracão onde trabalhava. Cruzeiro começou a ouvir as notícias sobre “o mundo” e cada vez mais tinha vontade de deixar o seringal e viver na cidade. Porém, nas suas palavras, “o patrão não deixava sair. Se fugisse, ele mandava matar”.
Cruzeiro então, junto com um grupo de cinco pessoas, escapou do cativeiro por dentro do Rio Purus, andando um dia inteiro com a água batendo na cintura. “As unhas quase caem.” Segundo ele, tal medida drástica “era para o cachorro não encontrar o faro da gente”. Saíram finalmente já no Rio Abunã, ficaram alguns dias trabalhando em um seringal próximo dali e depois foram para Porto Velho-RO.
“Quando eu saí dos seringais em 1964, e vim para a cidade, pensei que estava todo mundo doido. Quando eu cheguei daquela região ali, nem carro tinha pelas ruas. Aí já tinha muito carro, na rua, tinha rádio. Achei a cidade muito esquisita”, contou.
Em Porto Velho, Cruzeiro conheceu o Mestre Gabriel e a recém-criada União do Vegetal. Chegou ao Quadro de Mestres e, logo depois, mudou-se para Manaus-AM, com o objetivo de levar a UDV para aquela cidade. Lá, criou raízes e vínculos que o mantiveram ligado à União do Vegetal por toda sua vida.
Mestre Florêncio foi sem dúvidas um homem imprescindível para nossa instituição. Abriu mão de riquezas materiais para dedicar-se à obra do Mestre, com amor e reconhecimento a tudo que ela representa. Recebeu o título de Mestre nos Encantos, o “Sabiá” do Mestre Gabriel, pela forma como fazia as chamadas (cânticos do ritual religioso) no Salão do Vegetal.
Destacou-se também pela sua dedicação ao plantio de Mariri e Chacrona, sendo um dos pioneiros da UDV nesse trabalho, incentivando os irmãos e mostrando a importância de cultivar as nossas plantas sagradas. Ele dizia que o principal é o plantio, pois não adianta querer abrir Núcleos e trazer os ensinos, sem ter Chacrona e Mariri plantados.
Conta o Mestre Roberto Evangelista que “sua forma de doutrinar vinha rente quando necessária, mas estava sempre acompanhada e embasada nas palavras do Mestre Gabriel”. Seu valor está marcado para sempre na União do Vegetal, pois, como bem disse Mestre Roberto Evangelista, “sua vida e sua importância para nós não cabem aqui”.
*Pedro Bringel é integrante do Quadro de Sócios do Núcleo Santa Fé do Cariri. Texto originalmente publicado no mural do Núcleo Santa Fé do Cariri, em abril de 2018, e adaptado para o Blog da UDV.