Mestre Jair, 71 anos de um autêntico benfeitor
Renato Hoisel Gomes Arléo Barbosa*
| 24 Abril, 2021
Há exatos 71 anos, em 24 de abril de 1950, em Porto Velho, na Maternidade Central, nascia um menino aos sete meses de gestação. Aquele ser pequeno e frágil – que não coube nem em sua primeira roupa – cresceu em uma bela morada. Um lugar, semente de um mundo melhor, berço de muitas histórias: a casa do senhor José Gabriel da Costa, o Mestre Gabriel, e da senhora Raimunda Ferreira da Costa, a Mestre Pequenina – seu pai e a sua mãe. Essa criança veio testemunhar, aprender e contribuir com um trabalho que começaria ali, no seio de sua família, e se estenderia para toda a humanidade. Era o Jair Gabriel, que mais na frente viria a ser conhecido como Mestre Jair pelos seus amigos e discípulos.
Ainda criança, em um tempo no qual não existia internet, celular e as condições materiais eram mais difíceis, Jair foi com a sua família para o seringal. Um passo comum, de luta e coragem, dado por muitos brasileiros que entravam na floresta em busca do sustento pela extração do látex, da seringa, mas sem nenhuma garantia de que iriam voltar.
Aos 4 anos, Jair se cortou com um objeto enferrujado e passou a ter febre e convulsões constantes. Era a famosa “doença do vento”, como os seringueiros apelidavam o tétano, que levava embora muitas crianças naquela época. No meio da Floresta Amazônica, a quilômetros de qualquer civilização habitada, ninguém para socorrer. Eram dias de grande sofrimento, principalmente para a senhora Raimunda – carinhosamente chamada de Pequenina –, mulher de fibra e de fé.
Um dia, sem saber mais o que fazer diante da enfermidade de seu menino, dona Raimunda clama ao seu marido pela capacidade que ele demonstrava em seus trabalhos nos terreiros de umbanda… “E suas entidades que você tem aí, Gabriel?”, na esperança de que uma Luz Superior abrilhantasse naquele pequeno recinto e curasse o seu filho. Um pedido, um apelo, lançado como um último recurso de um coração de mãe. Eis que assim aconteceu.
Após o pedido, José Gabriel (que ainda não tinha se revelado Mestre) ficou um tempo em silêncio e se apresentou. Era o Sultão das Matas que havia chegado, trazendo uma boa nova: “Eu vou buscar um tratamento pra seu filho”.
Era noite. O Sultão pegou uma lanterna, uma estopa (um tipo de mochila) e entrou na floresta por uma “perna da estrada”, caminho na mata que leva até as seringueiras. Com pouco tempo, uma nuvem fechada cobriu o céu e caiu um temporal. Chuva, vento, raios, trovões, e Pequenina sozinha naquele casebre, no aguardo da providência. “Pronto, seu Sultão das Matas levou meu marido, ou as onças comeram, os índios pegaram”, pensou. A demora apertava o peito daquela mãe e o menino já parecia que não iria resistir. É quando uma voz rompe o ar:
“Tava na mata virgem quando mandaram me chamar; me chamo o Sultão das Matas aqui nesse casual!”
Aquela voz era o raiar de dias melhores para aquele lar. O Sultão trazia consigo folhas, raízes de árvore e deu a ordem de colocá-las para cozinhar: “Quando tiver fervendo a senhora me chama”. Obediente, Pequenina assim fez. Colocou lenha no fogão, aguardou até começar a borbulhar e o chamou. O Sultão das Matas então pediu um “pano virgem”, que nunca tinha sido usado. Pequenina pegou um tecido do tipo “morim” e lhe entregou. Seu Sultão então dobrou aquele pano em dois e, com o auxílio de Pequenina, colocou o menino dentro. O seguraram acima do vapor da panela, como uma pequena rede coberta. Jair, enfermo, imerso no quente vapor, começou a suar muito. Um suor amarelado que tomou conta de todo o tecido, como se expurgasse aquela doença. Quando já estava banhado de tanto transpirar, o retiraram de lá.
“Durante sete dias ele não pode sair de casa… Não pode ficar fora, no tempo, no terreiro… Tem que ficar preso dentro do quarto”, disse o Sultão. O quarto era o único local realmente fechado da casa do seringueiro, longe das friagens. A entidade então se despediu e disse que voltava com sete dias.
No terceiro dia, o menino Jair já tentava de todas as maneiras sair do quarto, mas sua mãe o segurava. Corria para um lado, corria para o outro, colocava o rosto entre as frestas da madeira da parede e ficava dando risada, olhando o lado de fora. Não foi fácil vencer aqueles dias, mas Pequenina obedeceu à ordem superior e com sete dias o Sultão voltou, como havia dito.
Cura
Aos olhos de Pequenina, o menino estava bem, mas o Sultão explica para ela que ainda faltava terminar o tratamento. Então ele levou aquela criança para tomar um banho de igarapé à noite. Pela pureza da água e demonstrando consciência do tratamento que estava fazendo, o Sultão afirma: “Pronto, o seu filho tá curado”.
A mãe Pequenina foi tomada de uma alegria tão grande, tão forte, como que agraciada por um milagre, e diz: “Seu Sultão, eu não tenho nada pra lhe dar… Então estou dando o meu filho pra ser seu afilhado e eu ser sua comadre”. Assim o Sultão das Matas passou a ser padrinho do Jair Gabriel. Sempre que o Sultão se apresentava, ele pedia a bênção: “Bênção, padrinho Sultão!”. E o Jair também foi crescendo e chegou a auxiliar nos trabalhos do próprio Sultão nos seringais.
Este acontecimento foi o primeiro contato que o Mestre Jair teve com este nome: “Sultão das Matas”. Um acontecimento marcante que, pela fé ligada ao amor de uma mãe e por um pedido ao Superior, a cura veio. Esta é apenas uma das histórias da vida do segundo filho do Mestre Gabriel e da Mestre Pequenina, que nos mostra a importância da fé, do acreditar.
Pois, em um lugar distante da civilização, onde se guiavam apenas pelas fases da Lua e pelo nascer do Sol, a ligação era com o Espiritual e é de lá que veio a resposta. Nos mostra também a necessidade da perseverança, da esperança, pois em um dos momentos de sofrimento, quando Pequenina pensou que tudo havia se perdido, o Mestre apareceu, vindo do florestal, clareando os sentimentos ali presentes, trazendo a possibilidade da Vida, do sanar das dores e da enfermidade. A força da renovação.
Tempos depois, quando já se realizavam as Sessões do Vegetal, o Mestre Gabriel revelou: “Tudo o que o Sultão das Matas fez eu sei. Porque o Sultão da Matas sou eu”. É quando Jair veio a saber que aquelas bênçãos que ele pedia aconteciam diante da presença viva do seu pai, de olhos abertos e consciente de seus atos. Era o trabalho do Mestre na preparação de cada degrau da escada, de seus discípulos. Uma maneira que encontrou para tirar as pessoas da ilusão, como ele mesmo disse um dia ao Mestre Braga.
Vegetal
Jair bebeu o Vegetal pela primeira vez no dia 1º de abril de 1959, junto com seu pai, sua mãe e seu irmão mais velho, Getúlio, pelas mãos de um senhor chamado Chico Lourenço. Era o mês de seu nono aniversário, quando começou a abrir os olhos para um novo tempo. Conduzido pelo seu pai, Mestre Gabriel, foi testemunha do início da União do Vegetal de 1961 a 1964, ainda nos seringais, e de 1965 a 1971 em Porto Velho, na presença do Mestre.
Mestre Jair conta que, no início em Porto Velho, quando tinha Preparo de Vegetal na olaria, ele e Getúlio iam na frente e iniciavam o trabalho. Em seguida, chegavam Mestre Gabriel, Mestre Braga, Mestre Hilton, Mestre Santos e outros, dando continuidade.
Ainda moço, em Porto Velho, chegou a dirigir a primeira Sessão de Jovens na União do Vegetal. O Mestre Gabriel um dia estava na olaria e viu Jair com alguns poucos filhos dos oleiros que bebiam o Vegetal e disse: “Jair, dirija uma Sessão para os seus amigos”. Ele não lembra de mais detalhes daquela Sessão, mas foi um momento em que o Mestre Gabriel demonstrou uma atenção pelos pouquíssimos jovens daquela época na UDV.
Autenticidade
Não por acaso, o Mestre Jair sempre teve uma ligação com os jovens e sempre foi admirado por eles. Pelo seu jeito simples, autêntico, sem rodeios e de olhar apurado, costuma se enturmar bem com a juventude. É comum o vermos conversando, cativando e zelando pelo futuro da União, procurando manter o rebanho limpo e sadio, com bom humor e entusiasmo, assim como aprendeu com o seu pai. Alguns destes jovens hoje já fazem parte do Quadro de Mestres e do Corpo do Conselho da UDV, e encontraram neste senhor uma figura marcante, disposto a ensinar e a doutrinar.
Mestre Jair fundou, junto com a Mestre Pequenina, o Núcleo Mestre Iagora em Porto Velho, sendo seu primeiro Mestre Representante. Mais na frente conheceu, em Salvador-BA, a Conselheira Ermanna Cavazzoli da Costa e nessa cidade veio morar. Fundou o Núcleo Salvador, foi Mestre Central da 4ª Região, ocupou o cargo de Mestre Assistente Geral, e em 2017 realizou o pedido de sua mãe, fundando o Núcleo Sultão das Matas, estando hoje em seu segundo mandato como Mestre Representante. Um Núcleo em homenagem ao seu pai, padrinho e amigo de sempre, que lhe salvou a vida. Sócio vivo mais antigo da UDV, é membro do Conselho da Recordação dos Ensinos do Mestre Gabriel, do Conselho da Representação Geral e do Conage.
Olhar artístico
Um dia o Mestre Gabriel, ainda no seringal, deu de presente um violão azul com um detalhe dourado para o pequeno Jair. Ele tocava aquele violão e cantarolava como podia, mesmo sem saber. Era, quem sabe, o anúncio e incentivo de uma história. Hoje o Mestre Jair tem uma banda chamada “Pé de Vento”. Nas suas músicas, encontram-se alguns “pontos” que o Mestre Gabriel cantava, ainda na época da umbanda.
Mestre Jair também é artista plástico há anos e é reconhecido em âmbito nacional e internacional. Desenvolveu um estilo próprio utilizando a técnica do pontilhismo e trilhou o seu caminho como artista, alcançando este renome de maneira independente de seu trabalho na União. Parte de suas obras e da trajetória artística está representada em um belo livro publicado em 2016. Jair Gabriel é funcionário público aposentado, hoje artista plástico e vive também de sua arte.
A este jovem amigo, que hoje faz 71 anos, desejo saúde e felicidades junto a toda a sua querida família. Que o Mestre Gabriel o abençoe hoje e sempre, na colheita das flores plantadas, na disposição de cativar e de ensinar. Sei que falo em nome de muitos irmãos, discípulos e amigos de caminhada. Que seja sempre este Mestre autêntico e benfeitor!
*Renato Hoisel Gomes Arléo Barbosa é membro do Corpo do Conselho do Núcleo Serenita (Lauro de Freitas-BA).
>> Clique aqui e assista um clip produzido em homenagem ao M. Jair Gabriel.