A história de Giovanni, autor do texto Mistérios do Vegetal

Jairo dos Santos*

| 4 janeiro 2018

Mestre Gabriel preparando o Vegetal na olaria (Porto Velho – RO) Foto: Cícero Alexandre Lopes.

Em toda Sessão de Escala do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (que acontece sempre nos primeiros e terceiros sábados de cada mês), é feita a leitura de um conjunto de documentos, logo após a distribuição do Chá Hoasca aos sócios. Entre esses documentos, que regem o funcionamento do Centro, encontra-se um texto, intitulado Mistérios do Vegetal, que se destaca dos outros pela sua composição poética, em forma de acróstico.

Esse texto, justamente o que conclui a sequência da leitura dos documentos, traz consigo uma história interessante ligada ao seu surgimento, no ano de 1968. Seu autor, Giovanni Nunes da Silva, bebeu o Chá Hoasca poucas vezes com Mestre Gabriel, mas deixou uma importante contribuição para a União do Vegetal.

Até recentemente, pouco se conhecia a respeito da história desse senhor. Sabia-se apenas que ele era baiano do município de Jacobina, e que havia saído de sua cidade de origem por conta do sumiço de um dinheiro, um acontecimento sobre o qual não se tinha maiores detalhes. Segundo conta o Mestre Raimundo Monteiro de Souza, Giovanni chegou a Porto Velho motivado por uma reportagem que ele leu a respeito do Mestre Gabriel, a bordo de um avião.

A ausência de informações mais precisas incentivou-me a iniciar uma pesquisa para conhecer mais sobre esse personagem. Com os dados que eu tinha em mãos, consegui localizar em Salvador dois de seus filhos, Giovanilza e Gutemberg. Graças a eles, pude entender um pouco mais da história do autor dos Mistérios do Vegetal.

A saída de Jacobina

Giovanni era coletor de impostos da Secretaria da Fazenda do Governo da Bahia, no município de Jacobina. Respeitado por todos na cidade, ele cultivava a arte de escrever e recitar poesias, e por isso mesmo era o orador oficial do clube Aurora Jacobinense. Era casado com Nilza Ferreira Nunes e tinha com ela duas filhas: Miriam (já falecida) e Giovanilza. Fora do casamento, tinha mais três filhos, dos quais o único ainda vivo é o Gutemberg.

Naquele ano de 1968, eram poucas as cidades que tinham agências bancárias, e isto fazia com que Giovanni às vezes carregasse consigo uma alta soma de dinheiro, resultado da coleta da semana. No dia 28 de junho, véspera da tradicional festa de São Pedro (que é comemorada em todo o Nordeste), Giovanni resolveu, antes de chegar em casa, tomar umas cervejas em um botequim. Trazia consigo a maleta com os talões da coletoria, e todo o dinheiro arrecadado dos últimos dias de trabalho. Já alcoolizado, saiu do botequim sem perceber o desaparecimento do dinheiro que estava na pasta; um total de CRN$ 8.500,00 (oito mil e quinhentos cruzeiros novos), o equivalente, na época, a 2.658 dólares.

Pela manhã, ao acordar, Giovanni percebeu o que tinha acontecido, e muito preocupado disse a sua mulher: “Sumiu todo o dinheiro que estava dentro da pasta, a coleta dos últimos dias, e amanhã estará chegando à cidade o inspetor da repartição. Estou correndo risco de ser preso”.

Diante da situação, ele resolveu sair por um tempo de Jacobina. Após conseguir algum dinheiro para deixar com a mulher, a quem não tinha contado que pretendia viajar, Giovanni escreveu uma carta para ser enviada à filha Miriam, entregou a Giovanilza para colocar nos correios, e disse a ela:

“Estou sofrendo muito em ter que me separar de vocês, mas não posso ser preso. Depois que eu partir, você conta tudo a sua mãe. Diz a ela que logo eu entro em contato. Vou visitar sua tia Olga, minha irmã, no Rio de Janeiro, e depois sua tia Nita, irmã de sua mãe, em Goiânia. Quando tudo se acalmar, eu verei o que fazer.”

Pensava ele que, durante a viagem, encontraria um jeito de provar sua inocência. Achava que, se fosse preso, seria muito difícil ser inocentado. Pretendia também encontrar uma forma de chegar a Miami, nos Estados Unidos, onde sua filha Miriam estava residindo e estudando.

Giovanni com as filhas Miriam (E) e Giovanilza | Acervo da família

A leitura da reportagem 

De acordo com o relato de sua filha, Giovanni iniciou a viagem com a decisão de visitar a irmã dele, Olga, que morava no Rio de Janeiro. E depois ir para Goiânia, onde morava a cunhada Nita, irmã da sua mulher. Ele foi para o Rio de Janeiro de carona em caminhões de carga. Portanto, o mais provável é que a leitura da reportagem a respeito do Mestre Gabriel tenha acontecido, ou na viagem do Rio de Janeiro para Goiânia, ou de Goiânia para Porto Velho, pois essas duas viagens foram feitas em aviões da Força Aérea Brasileira. Segundo Giovanilza, o pai contou-lhe que se inscreveu para viajar de graça pela FAB. E, conforme explica o Mestre Monteiro, foi justamente à bordo de um avião que Giovanni leu a reportagem a respeito do Mestre Gabriel.

Pelo período dos acontecimentos, tudo indica que essa reportagem foi aquela publicada no jornal o Estado de São Paulo, no dia 29 de agosto de 1968, intitulada “Na selva, um místico vende o sonho”, que fala sobre o surgimento de uma nova religião naquela região da Amazônia, conduzida por um baiano de nome José Gabriel da Costa. A reportagem trazia fotos da moradia humilde do Mestre Gabriel e de sua família em Porto Velho.

A chegada à casa do Mestre

Não existe registro da data em que Giovanni chegou à casa do Mestre Gabriel, mas é possível assegurar que foi no início de setembro de 1968. Um pouco antes da chegada dele, o Mestre anunciou aos seus discípulos que uma pessoa importante estava para chegar.

De acordo com alguns desses primeiros discípulos, Giovanni ficou pouco tempo em Porto Velho, mas bebeu Vegetal algumas vezes em Sessões com a presença do Mestre Gabriel. Depois, ele foi para Manaus, onde trabalhou na empresa dos mestres Florêncio e Geraldo Carvalho.

Ainda em Porto Velho, registrou-se na Inspetoria de Rendas Internas do Ministério da Fazenda, e no dia 18 setembro de 1968 recebeu o Certificado de Registro de Garimpeiro com autorização para garimpar no Rio Candeias.

Registro de garimpeiro de Giovanni, datado de 18/09/1968 | Acervo da família

Os Mistérios do Vegetal

Segundo os depoimentos dos Mestres fundadores do Centro, foi durante um Preparo, na antiga olaria do Mestre Gabriel, que Giovanni escreveu o documento composto de quatro estrofes. No local, tinha um igarapé, e na margem, uma palmeira. Após o Mestre distribuir o Vegetal, o Giovanni pediu licença para ir ao igarapé. Ele estava com uma caneta esferográfica e um papel no bolso. Chegando à beira do igarapé, ele sentou encostando-se na palmeira, ficando lá concentrado. Foi então que começou a escrever os Mistérios do Vegetal.

Depois que escreveu as três primeiras estrofes, trouxe e mostrou ao Mestre Gabriel que os leu e disse: “ainda está faltando, pode esperar que vem”. Ele então dirigiu-se para o final do barracão da olaria, onde escreveu a última estrofe. O Mestre Gabriel olhou e disse: “agora sim”. O Mestre então entregou o manuscrito ao Mestre Monteiro e o mandou datilografar.

Volta à Bahia

No final do ano de 1968, Giovanni retornou a Jacobina e retomou sua vida. O processo do sumiço do dinheiro foi arquivado pelo Governo do Estado. Embora ele não tenha recuperado o emprego, isso evitou que fosse preso. Dedicou-se ao estudo, formando-se em técnico de administração, e instalou um escritório para atender o comércio da cidade. Faleceu em 23 de março de 1977, acometido por um infarto do miocárdio.

Após beber o Vegetal com Mestre Gabriel, Giovanni praticamente aboliu o uso de bebida alcoólica. Sua morte não teve absolutamente nenhuma ligação com o consumo de álcool. Aconteceu por uma doença cardíaca que o acometera, provavelmente, segundo sua filha, pela grande tristeza provocada pelos sofrimentos que passara.

O funeral dele foi uma espécie de feriado no município de Jacobina. As escolas paralisaram suas aulas e o comércio fechou as portas para que a população pudesse comparecer e dar adeus aquele homem tão querido da comunidade.

Depoimento do Mestre Antônio Gabriel

No ano de 1971, quando esteve visitando sua família, Mestre Gabriel teve o seguinte diálogo com seu irmão Antônio Gabriel:

MG: “Antônio, Jacobina fica muito longe daqui?

MA: “Umas duas horas, uns duzentos quilômetros. Por quê”?

MG: “É que tenho um amigo que é de lá, o Giovanni, você conhece?”;

MA: “Conheço sim, é meu amigo também, já tomamos umas cervejas juntos, ele puxa de uma perna, conheço.”

MG: “Ele passou por um grande sofrimento. Deus e eu sabemos que ele é inocente, não roubou o dinheiro que dizem que ele roubou”.

Mestre Antônio contou que o Mestre Gabriel não foi a Jacobina porque já tinha feito compromisso de estar em Manaus no dia 25, e em Porto Velho no dia 27 de março.

*Jairo dos Santos é integrante do Quadro de Mestres do Núcleo Vento Divino (Lauro de Freitas – Bahia).