O povo yudjá e o Chá Hoasca

Duarte Antônio Guerra*

| 27 Abril, 2023

A história do povo yudjá com o Chá Hoasca pode ser contada a partir de várias perspectivas. A que passo a relatar é a que consegui construir com base na minha vivência, no que ouvi dos que vieram antes de mim, no que consta na literatura, no que ouvi dos próprios yudjás e, finalmente, no que tenho vivido com eles.

Ainda na década de 1960, Geraldo Carvalho, um dos Mestres que conviveram com Mestre Gabriel, foi o primeiro a verbalizar o pensamento de dar o Vegetal (também conhecido como Chá Hoasca na UDV ou ainda Ayahuasca) aos indígenas, ao que nosso Mestre ponderou que isso só seria possível com o apoio das autoridades. Com o passar do tempo essa ideia passa a ganhar forma e, com o crescimento do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, pessoas com diferentes formações profissionais passam a integrar esta instituição.

Assim é que chega ao Centro, no ano de 1996, o cirurgião-dentista Eduardo Mattos Biral, que juntamente com sua esposa, Estela, trazia em seu histórico a experiência de 18 anos de trabalho e convivência com os indígenas no Território Indígena do Xingu, onde residiu em aldeias durante a maior parte desse período.

Como o que tem de ser assume formas na fina tessitura do Mestre Gabriel, logo após a chegada de Eduardo Biral, chega ao conhecimento do Mestre Jair Gabriel que este irmão trabalhava com povos indígenas do Xingu e, em seu primeiro diálogo com Biral, orienta-o para que siga firme na União e, após receber sua Estrela de Mestre, possa levar o Vegetal aos indígenas, argumentando que eles são da natureza e terão facilidade em entrar nos encantos.

Distribuição do Vegetal para indígenas

Biral, já no Quadro de Mestres, passa a distribuir o Vegetal para alguns indígenas de diferentes etnias, a partir de 1996, a cada vez que vai ao Xingu para seu trabalho como dentista. Entre os que foram atendidos está o cacique Raoni, por quem tem uma recíproca relação de filho e pai, que contou coisas muito bonitas, indescritíveis, de sua primeira experiência com o Chá Hoasca. Outro povo atendido por Mestre Biral e que demonstrou interesse pelo Vegetal foram os panará, cujas terras estão no sul do Pará, onde chegaram a plantar Mariri e participaram de Sessões nas vezes em que Biral esteve com eles e levava consigo o Vegetal. Foi com este povo que, em 2010, foi realizada a primeira ação em saúde do Departamento Médico-Científico (Demec) da UDV, que se repetiu no ano seguinte.

Desde a primeira vez que os yudjás tiveram contato com o Vegetal, demonstraram uma estreita ligação com o Chá Hoasca, que os motivou a querer seguir comungando esse chá, a partir de então. Alguns desses indígenas deram mostras de estarem se reencontrando com algo que já lhes pertencera em outras épocas, se recordando dos relatos de seus ancestrais ao afirmarem que “tinham perdido, mas tinham que reencontrar”, pois sucessivas migrações os afastaram de áreas de ocorrência das plantas usadas na preparação desse chá.

Essa etnia nos impressionou com o lastro de uma firme persistência em continuar comungando a Hoasca, assim como sua disposição em reaprender a preparar o chá e cultivar as plantas necessárias para tal, o Mariri (Banisteriopsis caapi) e a Chacrona (Psychotria viridis).

A formalização deste desejo de seguir utilizando o Vegetal se deu por meio de um pedido encaminhado à Representação Geral da União do Vegetal no ano de 2012, no qual constava a necessidade de apoio no fornecimento do chá e auxílio no plantio das espécies para que atingissem autossuficiência no cultivo dessas plantas e, desde então, o Centro vem contribuindo com isto.

Nesse mesmo ano, em reunião ocorrida na Sede Geral do Centro, ficou estabelecido que seria dada liberdade para que os yudjás encontrassem sua maneira, ligada às suas raízes culturais, de trabalhar com o Chá Hoasca, cabendo às pessoas responsáveis por este trabalho prestar orientações cabíveis ao cultivo do Mariri e da Chacrona, preparo do chá e uso responsável deste, em sintonia com os desígnios do fundador da União do Vegetal e em obediência às leis do país, que preveem o uso ritualístico do chá.

Amizade

Nestes 12 anos de parceria, em que se construiu uma forte e profícua amizade entre a União do Vegetal e o povo yudjá, um número crescente de indivíduos da etnia, que conta com cerca de 500 pessoas, demonstrou interesse em comungar o Chá Hoasca, sendo que hoje todos praticamente o fizeram, e ainda fazem com alguma frequência o uso religioso do “Wapa”, nome como designam a Hoasca (em yudjá significa “medicina”).

Mudanças significativas aconteceram entre eles desde então, tendo sido banido de suas aldeias o uso de bebida alcoólica. O valor do que consideram uma medicina para a saúde e o bem viver dos yudjás foi expresso durante a III Conferência da Medicina Tradicional, realizada em 2022, num encontro onde detalharam o significado de saúde relacionando o que para eles se insere neste conceito:

“União; Relação com a natureza; Wapa (Hoasca) – ressurgimento da nossa cultura espiritual – recuperação da pajelança – revelações; Educação: a Natureza é faculdade, o Tempo nosso professor; Bem-estar do povo; Espírito muito forte que nos ensina; Amor – nós somos cheios de coisas que nós não percebemos; Somos guardiões da natureza – isso mexe com nosso psicológico.”

O Centro Espírita Beneficente União do Vegetal contribui também, em nome desta amizade construída, com trabalhos do Departamento Médico e Científico e do Departamento de Plantio e Meio Ambiente, além das ações da Casa da União e da Associação Novo Encanto de Desenvolvimento Ecológico, entidades coligadas ao Centro que têm desempenhado um trabalho socioambiental de grande valia para esse povo que Orlando Villas-Bôas considerava “amigos fiéis”.

A UDV desenvolve este trabalho guiada pelos princípios cristãos que regem o Centro e por uma atitude de amor e respeito aos povos originários de nosso país, verdadeiros guardiões de nossas florestas e nossas raízes como povo brasileiro. Um pouco desta história está retratada no vídeo que pode ser acessado por meio do vídeo abaixo.

Vídeo

Duarte Guerra (1)

*Duarte Antônio Guerra é Mestre Representante do Núcleo Florestal (Alta Floresta – MT) e coordena o trabalho desenvolvido com os yudjás.

16 respostas
  1. Adriano Cruz de Oliveira
    Adriano Cruz de Oliveira says:

    Já estive com o yarikawa e seu tio, eles que são yudja são impressionantes eles se manifestam de forma franca e breve, são silenciosos e tendem a ser muito calmos. Impressionante mesmo.

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  2. Tito Liberato
    Tito Liberato says:

    Uma riqueza sem tamanho esse contato com esse povo que carrega uma cultura milenar. Abrir-se-ão horizontes nunca antes imaginados. Igualmente importante o respeito à cultura deles, não querer converter à nossa sociedade nem catequizar. Parabéns, UDV.

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  3. Everton Pires
    Everton Pires says:

    Parabéns aos envolvidos. Trabalho com o povo Mebengokre (Kayapós) e é uma felicidade saber que temos pessoas à frente desses trabalhos na UDV e o carinho com nossos povos originários.

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  4. Maria do Docorro Mendonça
    Maria do Docorro Mendonça says:

    Estou encantada com o resultado, até aqui, desse belo trabalho.
    Muito importante a forma como foi trazido que me emocionou em vários momentos, assistindo o vídeo. Grata ao nosso Mestre Gabriel e a todos que vêem contribuindo para tornar realidade o que Ele nos trouxe.

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  5. Laurent Micol
    Laurent Micol says:

    Caríssimo Amigo M Duarte, tenho grande admiração por esse trabalho do sr e da União do Vegetal. Fico grato pela oportunidade de poder conhecer de perto tão nobre movimento. Temos muito a aprender dessa interação com nossos amigos Yudjá e, certamente, outros povos originários da Amazônia!

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