Hoasca, “buen vivir” e multiculturalismo

| 2 Junho, 2021

Em junho de 2019, durante sua participação na III Conferência Internacional da Ayahuasca, Girona (Espanha), o Mestre Assistente Geral, Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray*, abordou o tema “Ayahuasca, buen vivir e multiculturalismo” em sua palestra. Dada a relevância desta temática, o Blog da UDV publica novamente o texto autoria do M. Teodoro e disponibilizado neste espaço em julho de 2019. 

“Ayahuasca, buen vivir e multiculturalismo” foi tema de apresentação na Conferência em Girona, Espanha | Foto: Jocimar Nastari

O tema “Ayahuasca, buen vivir e multiculturalismo”, apresentado em painel durante a III Conferência Internacional da Ayahuasca (Ayahuasca World Conference)**, realizada em Girona (Espanha), em junho deste ano, abordou a experiência do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal na concretização dos princípios da liberdade religiosa, do bem viver e do diálogo intercultural que decorre da expansão desta sociedade religiosa. O tema do bem viver (buen vivir) está sendo internacionalmente debatido, em busca de alternativas para o enfrentamento da crise civilizacional enfrentada pela humanidade.

Crise civilizacional

A inversão de valores, somada à grave crise socioambiental, coloca o ser humano perante um quadro de injustiças, em que a desesperança e a depressão são sintomas de uma enfermidade social, característicos desta crise de civilização.

Parece paradoxal que o desenvolvimento da ciência e o progresso tecnológico, que prometiam uma vida com mais qualidade, estejam contribuindo para a degradação da biosfera e das relações pessoais. Embora a ciência tenha proporcionado muitos avanços em diversas áreas, a crença no progresso contínuo distanciou-nos da natureza, da qual somos parte.

O cineasta James Cameron comparou a situação planetária com o naufrágio do transatlântico Titanic. Uma máquina pesada que navegava com pouca visibilidade e não teve tempo para mudar o curso quando o iceberg foi avistado. Assim também, o pensador Edgar Morin afirmou: “A Nave Terra navega na noite e na neblina”. O fato é que na atualidade não podemos mudar radicalmente o curso do sistema econômico e social, seja por sua complexa dinâmica ou mesmo porque simplesmente a humanidade está distraída e parece não disposta a fazer uma correção de rumo. Esta parábola revela a arrogância do ser humano, que se considera grande demais para falir, assumindo a ideia cartesiana de que nos tornamos mestres e senhores da natureza.

Quando Max Weber (sociólogo e filósofo alemão) identificou a necessidade de “desencantamento do mundo”, iniciou-se um processo de dessacralização da natureza, o que era necessário para justificar a exploração predatória dos recursos naturais; assim, a fim de que uma floresta possa ser vista unicamente como matéria-prima para uma fábrica de celulose, é preciso que esteja totalmente desprovida de encantos.

O líder espiritual Dalai Lama identifica o orgulho e a exaltação como motores dessa força de destruição, na medida em que eles fomentam a autoidolatria humana, nos levando a transgredir nossos limites, que agora são ditados pelo mercado, e também a desrespeitar os limites de outros seres.

A Carta de Princípios da associação ambiental Novo Encanto (www.novoencanto.org.br), criada como braço ecológico da UDV, ressalta que “uma compreensão distorcida da generosidade da Natureza, fruto da arrogância e da presunção, levou o homem moderno a vê-la como subalterna, e a perceber a sua humanidade na razão direta da capacidade de dominar e manipular o mundo e outros homens”, sem perceber que o homem vale pelo que ele serve e não pelo que ele sabe, e, muito menos, pelo que ele tem.

Na Amazônia o impacto desta crise tem consequências ambientais que afetam não apenas as populações tradicionais, mas contribuem significativamente para o agravamento das mudanças climáticas e a perda de biodiversidade. Só no Brasil, o desmatamento da maior floresta tropical do mundo avança em escala crescente, atingindo 2.200 hectares por dia no ano de 2018, segundo dados oficiais (Inpe).

Na outra face desse processo, a perda de valores construídos em milhares de anos pelas populações nativas nos empobreceu culturalmente.

Ainda que o cenário seja grave, temos a capacidade de fazer as mudanças necessárias e certamente podemos encontrar na história do Império Inca a inspiração para superar esta crise.

Império Inca & “buen vivir”

Quando da chegada dos espanhóis à cidade de Cusco (onde hoje é o Peru), a capital do Império Inca era maior que Paris e Londres, e, enquanto nas cidades europeias o esgoto corria a céu aberto, em Cusco já existia um sistema de saneamento. Além disso, os incas reconheciam a natureza como sujeito de direito e nos legaram também um sistema de manejo da agricultura, com alta diversidade genética.

Para os incas o “buen vivir”, que também chamavam de “Sumak Kawsay”, era um princípio de Estado, exigindo equilíbrio, harmonia, criatividade e saber ser, além de pressupor complementariedade (vivemos bem onde há união), ou seja, o “buen vivir” não se confunde com o viver melhor, no qual alguns vivem melhor à custa dos outros.

Infelizmente o contato com a civilização ocidental marcou o fim do Império Inca, mas a herança dos “Filhos do Sol” persistiu ao longo do tempo, e o uso ancestral da Ayhauasca é certamente o maior legado que nos foi transmitido pelos povos indígenas amazônicos em contato com trabalhadores que extraíam o látex na Amazônia.

Bem viver na UDV

A experiência tem demonstrado que o uso religioso do Chá Hoasca ou Vegetal (como os adeptos da UDV denominam a Ayahuasca), nos rituais religiosos da União do Vegetal, oferece importante contribuição para a concretização do “buen vivir”.

Com o pensamento de “fazer uma paz no mundo”, José Gabriel da Costa, conhecido por seus discípulos como Mestre Gabriel, criou a União do Vegetal num ambiente de simplicidade, como um caminho espiritual de autoconhecimento, que trabalha pela evolução do ser humano por meio do desenvolvimento das virtudes morais, intelectuais e espirituais. Foi ele quem deixou os princípios que norteiam a ação da UDV, reconhecendo o Chá Hoasca como um Sacramento e recomendando que seu uso seja estritamente ritualístico, e nunca comercializado ou usado para fins recreativos.

Com esta visão, a União do Vegetal trabalha para garantir a sustentabilidade no uso do chá, promovendo o plantio das plantas utilizadas em sua preparação em sistemas agroflorestais, desenvolvendo projetos de conservação e educação ambiental, e também ações de beneficência em todos os países onde se faz presente. Outro aspecto importante desta sociedade reside no fato de que seus líderes são eleitos, não recebem remuneração pelo serviço que prestam e só permanecem na posição que ocupam se estiverem praticando o que se ensina.

A força espiritual do Mestre Gabriel, juntamente com esses princípios e valores, fez esta pequena sociedade religiosa, criada no coração da selva amazônica, se expandir por todo o Brasil e também internacionalmente, estando presente atualmente em 11 países.

A força da União também foi de grande importância na luta pelo reconhecimento institucional do direito ao uso religioso do Chá Hoasca no Brasil, como em outros países, incluindo os Estados Unidos, onde a Suprema Corte reconheceu, de forma unânime, a seriedade de propósito da UDV e seu uso responsável da Hoasca, assegurando-lhe o direito para utilizá-la como Sacramento em seus rituais naquele país. Naturalmente ainda há um longo caminho a percorrer, para superar preconceitos e desinformação, e, acima de tudo, realizar este princípio do “buen vivir”.

Neste trabalho, a Hoasca tem uma contribuição expressiva ao reduzir o ego à sua insignificância e nos conscientizar de que “o único domínio que cabe ao ser humano é o domínio sobre os impulsos destrutivos e autodestrutivos da sua própria natureza humana” (Carta de Princípios da Associação Novo Encanto).

O reencantamento do mundo

Assim, a União do Vegetal proporciona uma nova experiência de reencantamento do mundo, uma experiência de realidade que não é redutível à mercantilização e ao consumismo, ao querer ter, distantes da realidade do ser.

Honrando sua origem, a UDV promove um resgate da simplicidade cabocla. Ser simples em um mundo caracterizado pela complexidade é um desafio. Hoje as pessoas preferem se comunicar virtualmente a ter o “olho no olho” e a palavra clara que transmite a energia do sentimento. É nesta interação que vivenciamos a ética, no trato com os semelhantes e com a natureza.

A UDV acredita na necessidade da reconstrução de uma nova ética, pela qual seja resgatado o sentimento de cordialidade e respeito pela terra e por seus habitantes. Por isso a UDV desenvolve também um trabalho de apoio aos índios do Xingu, na Amazônia brasileira, tendo promovido o reencontro da Hoasca com o povo yudjá, os quais são considerados, pela Direção do Centro, amigos fiéis, como Orlando Villas Bôas assim os denominava.

O apoio a esse grupo indígena que havia perdido o contato com a Ayahuasca, quando migrou para o Alto Xingu, é promovido pelo Centro com respeito às tradições desse povo, de modo a proporcionar-lhes uma reconexão com suas origens.

Trata-se de uma iniciativa que reflete o multiculturalismo observável também nos países onde a UDV se faz presente, com o respeito aos aspectos culturais de cada nação, sem perder de vista os princípios firmados por Mestre Gabriel.

O uso da Hoasca como um Sacramento pode nos elevar espiritualmente, nos aproximando do Grande Espírito, o Supremo Criador do Universo. Esta comunhão pode nos tornar conscientes de que somos uma única humanidade e, à medida que nos reconhecemos como irmãos, encontramos a chave para a tolerância e a fraternidade, afinal, habitamos uma casa comum.

Para bem cuidar desta casa, precisamos de mais luz, o que significa mais clareza em nossa consciência; precisamos igualmente de viver em paz, pois por meio dela nos harmonizamos e podemos expressar o respeito por nosso próximo e pela natureza; em paz é mais fácil o Amor, esta Força Divina, se fazer presente em nosso coração.

*Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray é Mestre Assistente Geral do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal, Procurador do Estado de Mato Grosso e professor de Direito Ambiental na graduação e pós-graduação da UFMT.

**A conferência teve como título “Ayahuasca, ‘Buen Vivir’ and Multiculturality: UDV’s Experience in Achieving the Principles of Religious Freedom, Living Well and Intercultural Dialogue”, cujo tema está desenvolvido no artigo “Ayahuasca and Sumak Kawsay: Challenges to the Implementation of the Principle of ‘Buen Vivir’, Religious Freedom, and Cultural Heritage Protection”, publicado na revista “Anthropology of Consciousness” (vol. 27, p. 204–225), da Universidade da Flórida, e disponível no link: <https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/anoc.12057>.

| Publicada anteriormente em 9 de julho de 2019. 

8 respostas
  1. Mayoni lourenzzo Lima
    Mayoni lourenzzo Lima says:

    Um bom texto, pois comunga vozes de várias épocas, culturas e religiões em direção a um bem comum, o reencontro do homem com a natureza e o reconhecimento de que a UDV faz parte dessa força de salvação da natureza e de nós mesmo enquanto parte dela.

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    • Laura Maria Cardoso
      Laura Maria Cardoso says:

      Palavras claras, contextualizando o trabalho da UDV e o resgate do respeito pela natureza, ao reencontro do nosso Ser e do encantamento pela vida. Gratidão.

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  2. Regina de Araujo Soares
    Regina de Araujo Soares says:

    Um texto de profunda reflexão que também nos faz pensar na consequência de nossas escolhas para a construção de um mundo melhor, fazer parte da sagrada obra da UDV é de uma magnitude ad infinitum para estar e permanecer no caminho bem

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  3. Ana Paula Maravalho
    Ana Paula Maravalho says:

    Que linda conclusão e forma de expressar Luz, Paz e Amor! Que reconfortante ver o conceito do Bem Viver de mãos dadas com este símbolo!

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  4. Almir Nahas
    Almir Nahas says:

    Uma profunda e oportuna reflexão, que coloca a espiritualidade como caminho para vencer os desafios que o mundo está enfrentando. Parabéns pela clareza, M. Teodoro!

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